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De portas abertas para a sociedade

Unir forças com as famílias, valorizar saberes locais e encadear ações para o desenvolvimento das crianças. Essa é a base da relação entre a escola e o entorno

POR:
Beatriz Levischi

Aparecida Augusta de Oliveira Decat, diretora da EM Ulisses Guimarães, na periferia de Belo Horizonte, acreditava que o ambiente da favela jamais poderia contribuir de forma positiva para a aprendizagem de seus alunos. A gestora, porém, se surpreendeu ao ver o cuidado dedicado pela própria comunidade em relação ao espaço por onde as crianças passaram a transitar. O trabalho, resultado do projeto Escola Integrada, mudou a relação dos pais com a escola, criando condições de sociabilidade que resultaram em notas melhores.

Primeiro, os moradores organizaram um mutirão para rebocar as casas, com cimento e areia fornecidos pela instituição. "Cada um escolhia uma cor e os meninos faziam os desenhos com a ajuda de um senhor entendido de arte, mas sem diploma oficial", conta Aparecida. Depois, pressionaram o poder público para que os sacos de lixo fossem coletados diariamente, transformando o antigo lixão numa pracinha. "Os animais e os bêbados que perambulavam sem rumo pelas ruas voltaram para seus lares. Até o ponto de drogas mudou de lugar", lembra a diretora.

Criado em 2006 pela Secretaria Municipal de Educação, o Escola Integrada tem como objetivo oferecer uma formação integral aos estudantes do Ensino Fundamental, ampliando a jornada. "As atividades são conduzidas por universitários e agentes culturais e coordenadas pelo professor comunitário, que precisa ter um trânsito legal com as famílias", explica a coordenadora do programa, Neusa Macedo.

Hoje, em locais como a igreja, o terreno da prefeitura, a casinha da Companhia de Saneamento e a quadra da associação de bairro do Morro do Papagaio, onde está a escola, são realizadas oficinas de arte, jiujítsu, dança contemporânea, teatro, xadrez e capoeira. E a favela se encheu de cores e sons. "Costumo brincar, dizendo que nossos alunos não caem mais da laje, eles se machucam no judô", orgulha-se a diretora. Como reflexo, a população também passou a enxergar os alunos de forma diferente. "Se antes tinham medo ou dó dos meninos, agora os olham com admiração. Eles, por sua vez, se sentem mais capazes", festeja Aparecida.

Muros que caem
Pensar em projetos educacionais baseados nas demandas da comunidade e das possibilidades humanas, territoriais e temáticas do entorno é uma característica da gestão escolar organizada em redes. "Trata-se da escola que quebra o muro, se desenclausura e faz o currículo desenrijecer", define Jaqueline Moll, diretora de Educação Integral, Direitos Humanos e Cidadania do Ministério da Educação (MEC).

As redes existem, portanto, para dinamizar o processo educativo, torná-lo próximo da comunidade, fazer com que se relacione sensivelmente com aquela população, ajudando a construir sentidos e garantindo o direito de aprender. "Precisamos conhecer os espaços e saberes locais", sugere a secretária adjunta de Educação de Belo Horizonte, Macaé Evaristo. "Existem equipamentos públicos, organizações não-governamentais, associação de moradores, centros comunitários esportivos, parques, cinemas, terrenos baldios. Muitos deles nem estão catalogados."

Para potencializar o território e aumentar o impacto das iniciativas do bairro Cidade Aracy, a prefeitura de São Carlos, a 231 quilômetros de São Paulo, estabeleceu parcerias com diversos atores sociais da região. "A escola virou um centro cultural e o gestor comunitário ficou responsável pela ponte entre ela e o entorno", explica a coordenadora do programa Ações em Rede, Lourdes de Souza Moraes.

A EMEB Afonso Fioca Vitalli, por exemplo, se articulou com o programa Saúde da Família, construindo um atalho para que os alunos doentes sejam encaminhados diretamente a profissionais especializados sem depender das filas do posto de saúde. "Quando os pais recebem o aviso do professor e se omitem, os agentes comunitários vão até a casa", explica a diretora da instituição, Marlene Aparecida Gagliardi.

O prédio da biblioteca tem uma porta propositalmente voltada para a instituição e outra para a comunidade, visando atender os dois públicos simultaneamente. No local, além do projeto de leitura Hora do Conto, ocorrem apresentações teatrais de grupos voluntários. A prefeitura também oferece transporte para excursões à estação de tratamento de água, ao museu, à horta municipal, ao horto florestal e às fazendas históricas, sempre seguidas de atividades educativas.

Movidos a música
No dia em que o filho da diretora da EMEF Alfredo Spier, em Feliz, a 78 quilômetros de Porto Alegre, se apresentou com sua flauta, os colegas decidiram também aprender a tocar. E seguindo as diretrizes do programa A União Faz a Vida, desenvolvido pelo Sistema de Crédito Cooperativo (Sicredi), a instituição buscou parcerias na comunidade. O professor de música das turmas de 4ª a 7ª série veio do Programa de Esporte e Lazer da Cidade, uma iniciativa da prefeitura em parceria com o Ministério do Esporte. Os pais que tinham condições compraram o instrumento para os filhos. Os que não tinham ganharam as flautas do Sicredi.

Nas aulas de teoria e prática, o educador - membro da orquestra de Caxias do Sul, a 130 quilômetros de Porto Alegre - aproveita para dar dicas de postura. Até a professora de ensino religioso aderiu à idéia, levando letras de música para as turmas cantarem. Com o repertório variando de Asa Branca a Titanic, os alunos passaram a tocar flauta até no intervalo. Em novembro, realiza-se o festival de música da Alfredo Spier. Ansiosos por acompanhar os mais velhos, os pequenos do 1º ao 3º ano querem formar uma banda de latas, usando material reciclado. "Trabalhando em conjunto, sem competição, todos se sentem responsáveis pelo resultado", diz Eliana Einsfeld Krindges, coordenadora local do programa.

Reação em cadeia
Quando Andréa Caroline Correia Silva assumiu a direção da EM Prof. Daniel Alvarenga, no distrito de Zilah Spósito, em Belo Horizonte, havia um desgaste imenso na relação entre professores e alunos. O prédio era depredado e as crianças não gostavam de estudar. Agredidos, os profissionais pediam transferência para outras instituições.

Para reverter o quadro, os educadores deram início à produção coletiva de cartazes, visando divulgar normas simples de convivência e respeito, como cumprir horários, sentar durante a aula e fazer fila na cantina. "Antes, se os alunos não gostavam da comida, jogavam o prato para o alto", lembra a diretora. Com o uso de fotos feitas pelos próprios estudantes, novos cartazes foram colados nos ônibus para alertar a comunidade sobre questões de higiene e cuidados com o corpo. Os pais se sensibilizaram e passaram a se envolver mais com a escola. As brigas e pichações foram sumindo e os professores passaram a entender melhor a realidade local.

Hoje, a Daniel Alvarenga funciona como um pólo de organização. Com muito espaço físico e bem situada na comunidade, ela impacta diretamente seu cotidiano. Por outro lado, os moradores também agem na escola, participando das atividades complementares - os mutirões para pequenas reformas, as campanhas por melhorias ou integrando o Conselho Escolar. "Quando a população se co-responsabiliza pelo ensino, pode cobrar mais qualidade, ao colaborar para o desenvolvimento de valores, atitudes e habilidades fundamentais ao enfrentamento dos desafios da vida contemporânea", explica Anna Penido, coordenadora do Fundo das Nações Unidas para a Infância (Unicef) em São Paulo, Minas Gerais e estados do Sul do Brasil.

Em resumo, tanto a escola como a família cumprem papéis essenciais no processo educativo. Vanda Noventa, coordenadora do programa Melhoria da Educação no Município, iniciativa da Fundação Itaú Social, do Unicef e do Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação Comunitária (Cenpec), explica: "A família, sem dúvida, tem um papel fundamental na constituição do ser humano. É o lugar dos cuidados, do amor, da fraternidade, da ajuda mútua, do abrigo. Possibilita a sustentação psicológica e afetiva para viver em sociedade. Já a escola cuida da sistematização do conhecimento, da elaboração cognitiva, da socialização do saber".

No projeto Roda Rede! Prevenção, Letramento e Inclusão Social, idealizado pela Associação de Apoio ao Trabalho Cultural, Histórico e Ambiental (Apôitchá), no município de Lucena, a 28 quilômetros de João Pessoa, pais, alunos e professores participam de encontros de formação, em que aprendem a ouvir. Os educadores vão de casa em casa convidar os familiares para o debate sobre temas como meio ambiente, identidade, etnia, sexualidade, saúde preventiva, cultura de paz etc. Segundo a coordenadora da Apôitchá, Andréa Carrer Carvalho, a metodologia melhora a qualidade das reuniões convencionais, em que as famílias não têm voz, limitandose a aceitar a enxurrada de críticas sobre seus filhos. "A freqüência na escola aumenta porque os pais passam a dar valor a esses momentos."

O segredo do sucesso
No estudo Redes de Aprendizagem, realizado em março deste ano com 37 municípios brasileiros, o Unicef detectou dez fatores que influenciam no sucesso escolar. "São resultados óbvios, mas que não funcionam isoladamente", conta a coordenadora da entidade no Brasil, Maria Salete Silva. A maioria deles pressupõe justamente um diálogo próximo com a comunidade. "A cidade valoriza o ensino, está preocupada com o que a escola faz", explica a coordenadora da pesquisa, Mônica Samia.

A importância dos pais na aprendizagem dos filhos é tão grande que o nível socioeconômico e cultural da família aparece entre os três fatores que determinam o bom desempenho escolar no relatório Los Aprendizajes de los Estudiantes de América Latina y el Caribe: Primer Reporte de los Resultados del Segundo Estudio Regional Comparativo y Explicativo, publicado pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco). "Quando auxilio na tarefa de casa, modifico a forma como minha filha responde às demandas da escola", exemplifica a coordenadora da Área Programática em Ciências Humanas e Sociais e Projetos Transdisciplinares da Unesco, Marlova Jovchelovitch Noleto. "Esse estímulo contribui para que a performance dela melhore."

Famílias de baixa renda, no entanto, tendem a se distanciar do processo educativo por achar que não podem colaborar. "Devemos motivá-las a perguntar sobre as atividades feitas durante o dia, a olhar o caderno, a ler junto, a ajudar na tomada de decisões", sugere Macaé Evaristo, a secretária adjunta de Educação de Belo Horizonte.

Quando as famílias se interessam, os alunos também se interessam. Se um pai sabe fazer pipa, contar histórias ou tocar um instrumento, só tem a ganhar sugerindo uma oficina ao diretor. "Crianças acolhidas, felizes e seguras aprendem mais", garante Vanda Noventa.

Os alunos da EM Prof. Odilon Santiago, em Divinópolis, a 121 quilômetros de Belo Horizonte, contam com a habilidade das mães (e com o material que têm em casa) para confeccionar os figurinos das peças teatrais sobre os livros trabalhados em aula. As famílias também ajudam a decorar as falas e prestigiam os espetáculos mensais. Ao fim de cada apresentação, o público infantil recebe a missão de recontar a história encenada, inventar um final diferente, ilustrar ou estudar o autor. Todas as produções vão para o mural. Enquanto os alunos assistem às aulas de reforço diferenciadas e dinâmicas para dar conta de reverter a defasagem na aprendizagem, as mães se distraem em oficinas de arte, usando pincéis, tintas, linhas, agulhas e tecidos fornecidos pela escola. Nas festas, o corpo docente articula parcerias com profissionais voluntários da área da saúde, que medem a pressão e a glicose dos pais e dão palestras sobre câncer e dicas de primeiros socorros.

Mobilização e articulação
Cada comunidade deve encontrar sua própria maneira de unir esforços em prol de objetivos comuns. Na hora da sensibilização, diz Anna Penido, do Unicef, vale usar elementos, espaços e multiplicadores do entorno: "Junte adolescentes que entendam de comunicação e arte, por exemplo, e monte uma campanha usando a linguagem deles."

Durante as capacitações, prossegue Anna, devem ser considerados os saberes existentes para fazer com que as lideranças percebam seu papel na promoção de direitos. "Nós costumamos enxergar esses lugares como carentes, quando na verdade há festa, talento, potencialidades, produções interessantes e bem feitas."

Segundo ela, o terceiro passo é a articulação, já que uma pessoa, sozinha, tem menos força do que como parte de um grupo. Para garantir a eficácia do processo, aconselha Anna, o ideal é aproveitar os locais de encontro prestabelecidos no bairro. "Após a análise dos problemas e do planejamento das estratégias de atuação, não se esqueça de acompanhar os resultados, que retroalimentarão o processo."

Visando recuperar a área degradada de cerrado que fez secar Mina do Areião, na zona rural de Divinópolis, a EM Prof. Veneza Guimarães de Oliveira iniciou, em 2001, um projeto ambiental que envolveu todo o entorno. Esterco e sementes de árvores, tanto frutíferas como do cerrado, foram doados pelas famílias que trabalhavam em fazendas.

Os alunos montaram um banco de sementes e, quando as mudas começavam a brotar, iam para o viveiro. Junto com os pais, até hoje os meninos regam a plantação e observam seu crescimento. Ao atingir o tamanho adequado, as mudas são finalmente plantadas em definitivo. Visando aliar a prática à teoria mostrada nas salas de aula, todo o trabalho conta com o suporte de um educador ambiental.

Levando em conta o contexto
Os especialistas estão de acordo: um ensino contextualizado considera as questões da comunidade, tornando o conhecimento significativo. "Os muros da escola se flexionam, evitando que se decorem dados com o objetivo exclusivo de passar na prova", explica Sônia Madi, coordenadora da Olimpíada de Língua Portuguesa Escrevendo o Futuro, iniciativa do MEC, da Fundação Itaú Social e do Cenpec.

A coordenadora da área de Educação e Comunidade do Cenpec, Maria Júlia Azevedo, concorda: "Trazer o contexto local para dentro do currículo escolar facilita muito a aprendizagem". Para ela, o maior desafio está em encontrar professores dispostos e capazes de escutar e entender o que as crianças falam. Em vez de lidar com uma situação de forma superficial e linear, diz ela, o educador deve sempre buscar saídas. "Se os alunos vivem chegando atrasados porque no lugar em que moram não passa ônibus, sugira que pesquisem a causa geográfica, numérica e espacial dessa ausência de transporte coletivo", orienta. "Explique as relações de poder para que eles saibam com quem reclamar. Não adianta suspendê-los a cada três faltas."

Seguindo esse princípio, o Projeto de Educação para o Desenvolvimento das Escolas do Campo, implementado pelo Serviço de Tecnologia Alternativa, no sertão de Pernambuco, articula conteúdos voltados à agricultura com as disciplinas tradicionais, visando ao desenvolvimento sustentável. As questões detectadas no entorno, em entrevistas feitas pelos próprios alunos, viram conteúdo, e tudo o que se trabalha no projeto volta para a comunidade. "A escola assume o papel de mediadora de situações relacionadas ao meio ambiente, à vida animal e vegetal, ao resgate histórico e cultural", conta a coordenadora do projeto, Ilsa André Vicente.

Nessa troca de vivências, o professor aprende a respeitar seus limites, reconhecendo que os saberes da família têm valor e a repetência e a evasão escolar diminuem. Ao fim do processo, ele avalia as crianças, mas também é avaliado pelos pais.

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