Participação já! A escola aberta ao diálogo
Entenda por que suas ações devem ser pautadas pelo princípio da gestão democrática e confira como seis escolas estão fortalecendo os fóruns de de discussão
POR: Elisângela FernandesCompare a escola em que você trabalha com a que você estudou quando criança. Qual delas você consideraria mais democrática? Provavelmente, a de hoje, certo? Isso porque o contexto político está diretamente ligado à história da Educação no país. Há exatos 50 anos, o Brasil sofreu um golpe militar, que suprimiu o Estado de Direito - o que refletiu em um modelo de escola autoritário. Vinte anos depois, o movimento das Diretas Já foi fundamental para a retomada da democracia - e foi durante esse processo que a bandeira do ensino democrático ganhou força.
Durante a ditadura, a repressão e a censura, explícitas nas universidades, aconteciam de forma velada na Educação Básica: "Pairavam dúvidas sobre quais assuntos poderiam ou não ser tratados em sala de aula. Muitos conteúdos considerados subversivos não eram abordados. Havia uma autocensura", explica Carlos Roberto Jamil Cury, professor emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG).
Às escolas foi imposta uma concepção pedagógica tecnicista, voltada apenas para o mercado de trabalho. A relação entre alunos e educadores era pautada pelo temor, pela obediência e pelo dever. O papel do diretor era basicamente o de fiscalizar e controlar as atividades. Segundo Cury, embora os militares tenham passado a levar em conta critérios técnicos para o provimento do cargo, não houve avanço na forma de escolha, que continuou baseada em indicações políticas. Até hoje carregamos essa herança: um em cada cinco diretores que respondeu ao questionário da Prova Brasil de 2011 afirmou ter sido indicado ao cargo.
No final da década de 1970, em meio à pressão social pela redemocratização no Brasil, o Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública - formado por organizações ligadas à Educação - contribuiu para que a Constituição Federal dedicasse um capítulo inteiro ao direito à Educação. A Carta de Goiânia é um dos exemplos da mobilização exercida na época. Apresentada pelo Fórum durante a IV Conferência Brasileira de Educação (CBE) de 1986, ela defendia a criação de colegiados democraticamente constituídos e a ampliação da participação na elaboração e no controle social das políticas públicas educacionais em todas as esferas: federal, estadual e municipal.
O princípio de gestão democrática defendida pelo Fórum norteou ainda a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB) de 1996, cujo artigo 14 prevê a participação dos profissionais da Educação na elaboração do projeto pedagógico da escola e das comunidades escolar e local em conselhos escolares ou equivalentes.
A mobilização dos últimos 30 anos trouxe avanços. Segundo o relatório O Perfil dos Municípios de 2011, do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 76% das cidades brasileiras possuem conselhos escolares, 98% têm conselhos de controle e acompanhamento social do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) e 95% constituíram conselhos de alimentação escolar. Contudo, falta percorrer um longo caminho para que os princípios da Carta de Goiânia se tornem realidade e os fóruns de participação sejam fortalecidos. O recente cancelamento da Conferência Nacional de Educação (Conae), a menos de um mês da sua realização em Brasília, a indicação política dos conselheiros nos colegiados estaduais e municipais, assim como o fato de as decisões do Conselho Nacional de Educação (CNE) necessitarem de homologação do ministro da Educação são exemplos de que ainda há muito a ser feito.
Ouça a entrevista com Ivany Rodrigues Pino, professora aposentada da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e integrante do antigo Fórum Nacional em Defesa da Escola Pública:
A gestão democrática na escola
Mas, afinal, quais as características de uma gestão democrática? Engana-se quem pensa que bastam eleições diretas para o cargo de diretor. As decisões precisam ser de fato compartilhadas por todos: gestores, professores, alunos, funcionários e pais visando o pleno desenvolvimento da criança, o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho - como prevê o artigo 205 da Constituição Federal de 1988, que busca superar a visão tecnicista do ensino vigente durante a ditadura.
A construção de uma gestão democrática na escola, portanto, passa pelo fortalecimento das instâncias coletivas de discussão como o conselho escolar, o conselho de classe, a Associação de Pais e Mestres (APM), a avaliação institucional e participativa, as assembleias, os grêmios e outras formas de representação estudantil. Ao diretor cabe construir um espaço de diálogo e adotar uma postura transparente diante de todos os setores da comuniade. Infelizmente, essa não é a realidade de muitas escolas. "Há gestores que não ouvem o que a equipe tem a dizer, sonegam informações e atropelam o processo de discussão", critica Helena Singer, coordenadora da ONG Cidade Escola Aprendiz, em São Paulo.
Vale lembrar que a gestão democrática não é apenas uma forma de organização administrativa mas também parte de um projeto que garanta uma Educação de qualidade como prevê a Constituição. "A escola deve reconhecer a afirmação política do ser humano, pois a democracia pressupõe a convivência entre sujeitos. Se o objetivo é formar pessoas autônomas, qualquer ação de dominação é antipedagógica", defende Vitor Paro, professor e coordenador do Grupo de Estudos e Pesquisas em Administração Escolar (Gepae), da Universidade de São Paulo (USP).
À medida que as instâncias de debate se fortalecem, a comunidade escolar ganha poder e pode contribuir para que a escola siga no rumo da ampliação da participação, ainda que haja mudanças no quadro de gestores. A seguir, confira como seis escolas têm consolidado os espaços de discussão para construir uma Educação democrática.
Veja o vídeo com Vitor Paro:
Voz aos alunos
- Participação dos estudantes na tomada de decisão
Depois de enfrentar problemas de indisciplina, vandalismo e violência, Carlos Roberto Medeiros Cardoso, diretor da EMEF Deputado Caio Sérgio Pompeu de Toledo, na capital paulista, propôs abandonar o modelo de professores representantes de cada turma - no qual o poder era centrado na figura do adulto - e dar mais voz aos alunos, que passaram a eleger os representantes dentro do próprio grupo. Desde 2010, as demandas são discutidas semanalmente em sala de aula e levadas pelos escolhidos para outra assembleia, quinzenal, da qual participam também docentes, gestores e funcionários.
A iniciativa enfrentou resistência dos professores, até então os únicos interlocutores dos estudantes. Para favorecer o diálogo na escola, foram realizadas rodas de conversa com três educadores: José Pacheco, da Escola da Ponte, Vitor Paro, da USP, e o deputado estadual Carlos Giannazi. Os alunos ainda visitaram a Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo e instituições conhecidas pela gestão democrática.
Com o apoio de um ex-aluno, na época representante da União Municipal dos Estudantes Secundaristas (Umes), foi criado, também em 2010, o grêmio estudantil (veja quadro abaixo), com eleições realizadas regularmente. O colegiado e os representantes dos estudantes já alcançaram algumas conquistas: mobilizaram a equipe gestora e a Secretaria Municipal de Educação para custear um passeio para todos os alunos, já que alguns não poderiam pagar; participaram das decisões sobre a organização das aulas de reposição após as greves de 2012 e 2013; e pressionaram, por meio de um abaixo-assinado, um docente que propunha poucas atividades à turma a mudar de atitude.
Grêmio estudantil
O que é Organização formada por alunos eleitos diretamente pelas turmas. É um importante espaço de aprendizagem política, convivência, responsabilidade e luta por direitos.
Atribuição Representar os interesses desse segmento na escola.
Atenção Há escolas que inviabilizam a criação do grêmio sob a justificativa de que os estudantes não têm maturidade política para participar das discussões. Contudo, um dos papéis dessa agremiação é criar condições para a aprendizagem da atuação política.
Mais diálogo com a comunidade
- Pais, vizinhos e funcionários atuantes
O CE Yvone Pimentel, em Curitiba, está sendo totalmente reconstruído. Desde 2009, a diretora, Adriana Kamp, buscava uma solução para as goteiras, o mofo, os problemas de iluminação e de ventilação e a ausência de acessibilidade para os alunos com necessidades educacionais especiais (NEE). Apesar das solicitações feitas por e-mails e ofícios, a promessa de reforma feita pela Secretaria Estadual de Educação não se concretizava. Em 2012, a comunidade foi às ruas exigir o início das obras e o conselho escolar (veja quadro abaixo) acionou o Ministério Público e a imprensa local.
A pressão social resultou na realização de uma reunião com representantes da secretaria. "O encontro contou com mais de 500 pessoas", lembra Adriana. Ao final das discussões, foi aprovada a realização da obra e o conselho escolar ficou responsável por criar uma comissão específica para participar da elaboração do projeto, formada por representantes da sociedade civil, como ONGs, igrejas, professores, funcionários, familiares dos alunos e membros do grêmio estudantil.
O colegiado participou da escolha dos materiais, conseguiu instalar aparelhos de ar-condicionado em algumas das salas improvisadas - cuja ventilação inadequada atrapalhava as aulas - e influenciou o cronograma da obra. Com isso, os banheiros, o refeitório, os laboratórios de Ciências e Informática e a sala de apoio foram os primeiros espaços a ser inaugurados.
Conselho escolar
O que é Colegiado composto de representantes de todos os segmentos da escola: pais, alunos, professores, gestores e funcionários.
Atribuição Propor, acompanhar e fiscalizar as ações realizadas na escola. Na pauta de reunião, entram questões pedagógicas, de infraestrutura, de clima e outras.
Atenção Os membros devem ser eleitos por seus pares e não escolhidos apenas pelo alinhamento político que possuem com os gestores.
Transparência no uso de recursos
- Prioridades definidas coletivamente
A EM Ismael Junqueira de Souza, em São Lourenço, a 387 quilômetros de Belo Horizonte, tem apostado na oferta de outras atividades no contraturno, como aulas de teatro, música, coral e fanfarra. A compra de materiais e o pagamento dos docentes necessários para que essas aulas ocorram vem de recursos obtidos com a locação de outdoors instalados nos muros da escola - localizada em um ponto privilegiado, próximo à entrada principal da cidade - e com a realização das festas junina e da primavera. A decisão sobre como usar o dinheiro arrecadado é tomada pelo conselho escolar e pela Associação de Pais e Mestres (APM) (veja quadro abaixo). Ambos têm caráter consultivo, mobilizador e deliberativo.
"O fortalecimento dos colegiados na nossa escola têm contribuído para que haja continuidade no processo de democratização da gestão", avalia Arthemisa Freitas Guimarães Costa, pedagoga do Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia do Sul de Minas Gerais (IF Sul de Minas), que trabalhou na escola entre 1996 e 2012 como professora, supervisora e diretora eleita por dois mandatos. Atualmente, ela é uma das integrantes da APM por ser mãe de um estudante da instituição. Os membros desse conselho são eleitos diretamente por cada um dos segmentos representados.
Associação de pais e mestres (APM)
O que é Também chamada de caixa escolar, conselho fiscal e outras nomenclaturas, dependendo da rede de ensino, é uma entidade jurídica de direito privado da qual participam os educadores e os responsáveis pelos alunos.
Atribuição Discutir com a comunidade escolar como os recursos da escola são usados e prestar contas, explicando como os gastos foram realizados.
Atenção A APM não deve ser um colegiado meramente burocrático para validar a decisão tomada pelo gestor. É preciso envolver o conselho escolar e demais colegiados nas decisões sobre a utilização e a transparência da utilização do dinheiro.
Queremos decidir juntos
- A democracia como um pilar da escola
No dia 12 de fevereiro de 2014, a EE Presidente Emilio Garrastazu Médici, em Salvador, passou a se chamar Colégio Estadual Stiep Carlos Marighella. Trata-se de duas homenagens. A primeira, ao Sindicato dos Trabalhadores das Indústrias de Extração de Petróleo (Stiep), que fundou o bairro em que a escola fica. A segunda, ao comunista e guerrilheiro, assassinado pelo regime militar.
A alteração foi acatada pela Secretaria Estadual de Educação após a decisão ser aprovada em uma assembleia (veja quadro abaixo) que envolveu os moradores do bairro, alunos, funcionários e educadores, no fim do ano letivo de 2013. "Nosso objetivo foi lançar um olhar crítico sobre o valor simbólico de ter como patrono um presidente cuja atuação política é considerada uma das mais repressivas do período da ditadura", comenta Aldair Almeida Dantas, diretora da escola desde setembro.
Os ex-alunos foram convocados a participar das discussões. Muitos tinham receio de que, por causa da mudança, o histórico escolar perdesse a validade. Os funcionários explicaram que um carimbo seria suficiente para atualizar os documentos. Esclareceu-se também à comunidade que os custos dos novos uniformes e da nova placa ficariam a cargo da secretaria.
Durante o último trimestre, os alunos assistiram documentários, participaram de palestras e pesquisaram sobre a história do bairro e a biografia de Médici (1905-1985) e de dois baianos ilustres: o geógrafo Milton Santos (1926-2001) e o guerrilheiro Carlos Marighella (1911-1969). O resultado final do trabalho foi uma exposição aberta à comunidade sobre cada um deles para que todos pudessem fazer sua escolha nos dez dias em que a votação ficou aberta. A reinauguração da escola com a nova fachada ocorreu em abril.
Assembleia
O que é Encontro que reúne todos os segmentos da comunidade escolar: pais, alunos, professores, funcionários, gestores e instituições locais parceiras.
Atribuição Deliberar sobre um assunto de interesse geral.
Atenção Nem tudo precisa ser levado à assembleia. Assuntos que digam respeito a uma turma, por exemplo, devem ser prioritariamente resolvidos em sala de aula.
Educação de qualidade é direito de todos
- Avaliação feita pela equipe e pela comunidade
O Núcleo de Desenvolvimento Infantil (NDI) da Universidade Federal de Santa Catariana (UFSC) realiza a avaliação institucional participativa há alguns anos. Em 2013, a equipe gestora passou a usar parte da metodologia dos Indicadores da Qualidade na Educação Infantil, do Ministério da Educação (MEC).
A avaliação instituicional participativa (veja quadro abaixo) apontou importantes ações para melhorar ainda mais o trabalho realizado com as crianças. Em cada turma, os pais foram convidados a analisar a qualidade da infraestrutura, das condições de ensino e aprendizagem, assim como a atenção e o profissionalismo dos profissionais da escola. Em outro momento, todos os funcionários da escola fizeram a sua avaliação.
Tudo foi documentado. Em um dos espaços da escola, foi feita uma exposição com fotos e registros do quadro de indicadores, para que toda a comunidade pudesse acompanhar. Além disso, os resultados foram comunicados em reuniões internas e de pais.
Um dos pontos que mereceu atenção foi a atualização e a disponibilização da proposta pedagógica da instituição. Ela foi novamente discutida com a comunidade escolar e editada numa publicação que será entregue aos pais, aos educadores e aos funcionários.
Avaliação Institucional Participativa
O que é Encontro que reúne toda a comunidade escolar: pais, alunos, professores, gestores e funcionários.
Atribuição Analisar os indicadores de qualidade da escola avaliados pela comunidade escolar e propor ações para aperfeiçoar as condições de ensino e aprendizagem.
Atenção O gestor deve criar as condições para que a comunidade escolar se sinta à vontade e segura para fazer elogios e críticas.
Aprendizagem em primeiro lugar
- Correção de rumo ao longo do ano letivo
Na Escola Educativa, em Ourinhos, a 370 quilômetros da capital paulista, as reuniões do conselho de classe (veja quadro abaixo) são feitas a cada dois meses e não apenas no fim do ano ou do semestre, como ocorre em muitos colégios. Nos encontros, a equipe discute o que os alunos ainda precisam aprender, as estratégias usadas em sala de aula e avalia como aperfeiçoá-las.
Para isso, coordenadores e professores analisam previamente as produções da turma. Os docentes respondem um questionário indicando possíveis razões pelas quais o estudante aprendeu ou não os conteúdos trabalhados em sala.
"Mais do que responsabilizar o aluno, buscamos encontrar as melhores estratégias de ensino para que ele possa progredir. Não esperamos até o fim do ano para tomar uma providência", enfatiza Andréia Lucente, coordenadora pedagógica dos anos finais do Ensino Fundamental e do Ensino Médio.
Acompanhar e propor ações concretas sempre que surge uma dificuldade é o melhor caminho. Um aluno do 7º ano apresentou em 2013 resultados abaixo do esperado em quase todas as disciplinas. Para reverter o quadro, a equipe gestora conversou várias vezes com o rapaz e com a família e, juntos, organizaram uma rotina de estudos em casa e de reforço na escola. A primeira demonstração de que o quadro estava se revertendo foi uma boa nota em Inglês, que rendeu elogios e palavras de incentivo. No fim do ano letivo, o estudante estava abaixo da média em apenas uma disciplina.
Conselho de Classe
O que é Grupo que reúne professores e gestores escolares.
Atribuição Analisar quanto cada aluno aprendeu, refletir sobres as condições de ensino e aprendizagem oferecidas e aperfeiçoá-las.
Atenção O fórum não deve ser utilizado para responsabilizar os estudantes e a família pelos problemas.