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As memórias dos professores como recurso de formação

O plano da coordenação pedagógica é bem-sucedido quando leva em conta, além das lacunas do conhecimento, a trajetória pessoal e profissional da equipe. Afinal, afetividade - tudo aquilo que nos atinge positiva ou negativamente - faz parte da constituição dos indivíduos

POR:
Laurinda Ramalho de Almeida
Laurinda Ramalho de Almeida
Laurinda Ramalho de Almeida Doutora em Psicologia da Educação e professora do Programa de Estudos Pós-Graduados em Educação, da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP)

Nós, formadores de professores - categoria em que se incluem os coordenadores pedagógicos -, frisamos a importância de a equipe docente conhecer não apenas o percurso escolar dos alunos mas também a trajetória de vida deles, pois isso ajuda a avaliar as lacunas de aprendizagem e formular possibilidades para fazê-los avançar. No entanto, não agimos da mesma forma com relação aos professores. Geralmente, elaboramos projetos de formação para suprir demandas de conhecimentos que julgamos necessários. Esquecemos, porém, que os educadores também carregam uma história, atribuindo sentidos ao trabalho e à relação com os alunos e os pares. Trata-se da biografia cognitivo-afetiva.

A biografia se constitui ao longo da trajetória pessoal e profissional, trazendo as marcas da infância, da vida escolar, das expectativas ao ingressar na carreira, das lutas para a valorização da profissão e de tudo o que se aprendeu. São memórias com predomínio ora cognitivo, ora afetivo.

Afetividade, cognição e motricidade são dimensões que, integradas, constituem a pessoa (Wallon, 2007). Qualquer atividade interfere em todas elas, embora com maior ou menor predominância, conforme as circunstâncias. Via de regra, a escola é um espaço em que se privilegia a cognição. Por isso, neste artigo, vou me dedicar à afetividade - que consiste em tudo aquilo que nos atinge positiva ou negativamente, de origem externa ou interna.

Tanto situações agradáveis como desagradáveis, que podem causar conforto ou desconforto, fazem parte da constituição do indivíduo. Quando nós, coordenadores pedagógicos, deixamos essa bagagem de lado, os objetivos da formação se perdem, como ilustra a fala do personagem Riobaldo em Grande Sertão: Veredas, de João Guimarães Rosa (1908-1967), ao narrar a travessia pelos sertões das Gerais: "Querer o bem com demais força, de incerto jeito, pode já estar sendo querendo o mal, por principiar" (Rosa, 1984, p.16).

Diário aproxima memórias da teorização da prática

Relato, a seguir, uma modalidade com a qual tenho trabalhado como recurso de formação e de pesquisa: o diário de itinerância. Com as devidas adaptações, ele pode ser útil no complexo trabalho do coordenador pedagógico, pois permite o aproveitamento das memórias predominantemente afetivas como alavanca para a valorização do trabalho e dos conhecimentos. Com base nisso, avança-se para a teorização da prática. Essa inciativa leva em conta os seguintes princípios:

  • Quanto mais os projetos individuais constarem dos projetos de formação, maiores serão as chances de atingir os objetivos. Quando o docente se percebe contemplado no projeto, surge um sentimento de pertencimento, que se expressa por envolvimento nas atividades propostas.
  • Os indivíduos não recebem passivamente as marcas dos diferentes meios sociais, pois são capazes de fazer opções e efetuar transformações.
  • A memória é um dos elementos-chave da constituição identitária. Quanto mais o professor se conhece, mais reavalia as escolhas e elabora projeções para o desenvolvimento profissional.

Proposto como técnica de pesquisa-ação por René Barbier, professor emérito da Universidade de Paris VIII - Saint-Denis, na França, o diário de itinerância consiste em "um bloco de apontamentos no qual cada um mostra o que sente, o que pensa, o que medita, o que poetiza, o que retém de uma teoria, de uma conversa, o que constrói para dar sentido à sua vida" (Barbier, 2007, p. 132). Sua principal característica é a volta aos fatos passados, às lembranças de acontecimentos importantes, aos sonhos secretos, enfim, aos pensamentos e sentimentos que marcaram o itinerário percorrido por uma existência concreta, situada.

O diário passa por três fases:

  • 1. Rascunho Não há preocupação com recursos estilísticos, mas um empenho em registrar o que parece importante à trajetória pessoal.
  • 2. Elaborado Outros fatos e reflexões podem ser acrescentados para compor um texto. Há um empenho do escritor em escrever com simplicidade, mas sem renegar a cultura, as experiências, as áreas de conhecimento e as expressões afetivas.
  • 3. Comunicado/socializado Redige-se tendo sempre em mente um interlocutor virtual. O autor é, por excelência, um ser social. É esse texto (ou parte dele) que será oferecido a um grupo de leitores.

Barbier acrescenta ainda outra possibilidade: que o diário de itinerância se torne coletivo, redigido por um grupo ou subgrupo. Nesse caso, ele passa a representar "o caderno de inteligência do grupo em direção à realização do seu objetivo" (2007, p.142).

Com base em Barbier, emprego o diário de itinerância como instrumento de formação, adaptando os textos em função da demanda dos formandos. A dinâmica é a seguinte: um texto é lido - durante o encontro ou com antecedência - e discutido no grupo. Em seguida, elabora-se o diário-rascunho, na hora mesmo, com base nas anotações. É preciso selar um compromisso de cada um redigir o seu diário elaborado, lembrando que ele será apresentado ao grupo e que, portanto, a escrita deve ser cuidadosa. Na reunião seguinte, há a socialização, que gera novas discussões.

O que os depoimentos revelam

Ouça o depoimento* de alguns docentes com os quais trabalhei.

Professora Beatriz

Professora Dayse

Professora Vanessa

Professora Vânia

Professora Thaís

*Os depoimentos foram adaptados e reconstituídos em áudio.

Com base nos depoimentos, podemos concluir que:

  • Ao registrar os momentos que os afetaram (tocaram) em determinado ponto da trajetória de vida, os membros da equipe ganharam maior intimidade com os textos lidos e discutidos.
  • A recordação de fatos da vida trouxe reconhecimento pessoal e profissional.
  • Socializar reflexões feitas permitiu a ampliação do autoconhecimento, tanto para o autor como para os ouvintes; compartilhar as trajetórias permitiu uma aproximação maior do autor com o grupo e colaborou para a constituição de um coletivo.
  • As lembranças da relação professor/aluno vivenciadas tanto como docente quanto como discente levaram ao questionamento sobre a própria atuação profissional.
  • Escrever em primeira pessoa, reconhecer-se autor, ser ouvido com respeito estimulou novas escritas.
  • Não houve desconforto ao relatar a trajetória pessoal pois foi narrado apenas o que se considerou adequado.
  • A qualidade das relações interpessoais foi fundamental para que os objetivos de uma proposta de formação e acompanhamento do tipo diários de itinerância fossem atingidos. Ouvir com atenção, apresentar-se de forma autêntica, tanto da parte do formador como dos formandos, são recursos para a melhoria dessa qualidade.

Outras modalidades podem ser planejadas para mobilizar os professores a recordar e compartilhar experiências, como discutir como os docentes se relacionam com aqueles que participaram e participam de suas vidas. Perguntar por que as pessoas os afetam gera pontos de reflexão para ressignificar conceitos, mudar, afinar e evoluir, como uma docente registrou em seu diário citando Guimarães Rosa (1984, p. 21): "Mire, veja, o mais importante e bonito, do mundo, é isto: que as pessoas não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre mudando. Afinam ou desafinam. Verdade maior. É o que a vida me ensinou. Isso me alegra, montão".

Mobilizar emoções, sentimentos, percepções e pensamentos é uma forma de tornar públicos os "saberes não sabidos" (Delory-Monberger, 2008), que desempenham papel fundamental na formação. Daí a importância de aflorar os incidentes críticos - aqueles que têm um papel decisivo na trajetória do docente. Os eventos que relembramos e relatamos, por exemplo, podem tratar de coisas rotineiras que nos fizeram sentir felizes ou infelizes, que nos agradaram ou desagradaram. No entanto, ao refletirmos sobre seu significado, outra forma de relação com o saber e com as situações do cotidiano pode emergir. Só o próprio indivíduo pode entender um incidente como crítico, pois ele assim se revela durante o processo de interpretação. Por isso, o formador precisa estimular que os participantes do encontro reconheçam nos relatos detalhes que antes lhes escapavam, percebendo o que promoveu mudanças na trajetória e na atuação profissional.

Uma ressalva: o resgate das memórias afetivas e a reflexão sobre elas, relacionando-as com a teoria em projetos de formação, não são fins em si mesmos. Trata-se de meios para o professor adquirir clareza da repercussão das ações sobre as crianças e os jovens que estão sob sua responsabilidade - e, assim, a seu modo, colaborar para a construção de uma sociedade mais justa.

Referências bibliográficas

  • Almeida, Laurinda R. Diário de Itinerância, Recurso para Formação e Avaliação de Estudantes Universitários. Estudos de Avaliação Educacional, São Paulo, V. 23, n° 51, p. 250-269, jan.-abr. 2012.
  • Barbier, René. A Pesquisa-ação. Brasília: Liberlivros, 2007.
  • Bolívar, Antônio (Org.). Profissão Professor: o Itinerário Profissional e a Construção da Escola. Trad. Gilson Souza, SP: Edusc, 2002.
  • Delory-Monberger, C. Biografia e Educação: Figuras do Indivíduo-projeto. Natal: EDUFRN /São Paulo: Paulus, 2008.
  • Guimarães Rosa, João. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
  • Tripp, David. Critical Incidents in Teaching: Developing Professional Judgement. London: Routledge, 1993.
  • Wallon, Henri. A Evolução Psicológica da Criança. São Paulo: Martins Fontes, 2007.
  • Woods, Peter. Critical Events in Teaching and Learning. London: The Falmer Press, 1993.