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A Sobral que o Brasil não conhece

Um mergulho na rede que mais cresce no Ideb

POR:
Gustavo Heidrich
Beatriz Gouveia. Foto: Victor Malta

Quando entrei nas salas da melhor escola de Ensino Fundamental 1 do Brasil, segundo o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), fui recebido com gritos de guerra. "Segundo ano pode, segundo ano mais, a prova da externa é a gente que faz. Vencedor eu sou, yes, yes, yes!" "Força, garra e determinação. Esse é o nosso lema, para sermos campeões, 4ª ano é 10!" "Juntos, unidos, para vencer na educação. Com fé, foco e determinação. O 5º ano é campeão!"

As frases, entoadas a plenos pulmões, são uma espécie de boas-vindas de cada turma da Emílio Sendim, escola com Ideb 9,8 nos anos iniciais em Sobral, no Ceará. No final, todos terminam com as mãos levantadas. Na primeira impressão, assusta, como acontece em algumas escolas liberais em São Paulo e no Rio. Nos corredores, cartazes com frases motivacionais e até uma contagem regressiva para as datas da avaliação externa parecem confirmar a hipótese de que a rede que mais cresce em qualidade de ensino no país produz pequenos robôs que só sabem resolver testes.

 Foto:Tiago Henrique
Grito de guerra é o carro-chefe da motivação nas salas de aula em Sobral (Foto: Tiago Henrique)

Ao longo dos anos, o jornalismo nos deixa céticos com resultados espetaculares. Para atingir o quase 10, a escola de Sobral precisou garantir além da aprovação total, que os 115 alunos de 5º ano que fizeram a Prova Brasil em 2015 praticamente "fechassem" o teste, como dizem os sobralenses. Ou seja, acertassem quase todas as questões. Para ter uma ideia da dimensão dos resultados, na Emílio Sendim, 48% dos alunos atingiram o nível máximo de proficiência em Português contra 1% em todo Brasil, e 38% o máximo em Matemática perante 0,4% no resto do país.

Naquele momento parecia fazer todo sentido a crítica contundente de uma dos maiores opositores do modelo de Sobral, o professor Luiz Carlos Freitas, da Unicamp. "Sobral é o que não se deve fazer se queremos mais que um ‘feijão com arroz’. Um sistema de alta qualidade exercita a formação humana e não só a memória. Não se contenta com medir a aprendizagem em provas e massacrar os alunos para irem bem nelas".

"Não abandonamos o básico, o aluno só aprende se estiver na sala." MARIA CRISTINA OLIVEIRA, coordenadora pedagógica da Emílio Sendim

Mas comecei a mergulhar no cotidiano da Emílio Sendim e das escolas-fenômeno de Sobral e encontrei uam realidade muito mais rica e complexa. Na escola 9,8 fui recebido pela diretora Antônia Mílvia Siqueira. O primeiro ambiente que conheci foi a secretaria. Uma sala quadrangular extremamente organizada, com pastas, arquivos e fichas dos alunos meticulosamente catalogados. A secretária Maria de Lima Vasconcelos, há 16 anos na escola, e a auxiliar Antônia Bastos Gomes, 30 anos de rede, controlam em planilhas diárias, mensais e anuais a frequência e o cumprimento das tarefas. Na entrada, um painel é atualizado diariamente com as faltas por turma.

Os dados chegam da coordenadora pedagógica Maria Cristina Oliveira, que começou como alfabetizadora em 2002. Ela faz diariamente o que a rede de Sobral chama de "caminhada pedagógica", passando em todas as salas para observar a prática dos professores e recolher os dados de frequência e dever de casa que os docentes já deixam anotados em um canto do quadro para que a aula não seja interrompida. Depois de entregar os números na secretaria, ela liga para a casa dos alunos ausentes. Se as faltas se repetem sem justificativa, ela vai até as casas. "Não abandonamos o básico, o aluno só aprende se estiver na sala."

Parei para acompanhar uma aula. Na sala, a professora do 5º ano Ana Fábia Barbosa discutia o "eu lírico" com os alunos a partir de trechos de textos literários. A turma - em Sobral elas têm em média 28 alunos - estava organizada em grupos. As crianças respondiam questões colocadas pela professora com autonomia e fluência. Aquilo me pareceu distante do automático.

Segui para a biblioteca, um espaço amplo com um acervo diversificado. Vi os cartões de empréstimo de livros quase lotados. No recreio, conheci a agente de leitura da escola. Em Sobral, cada unidade tem um professor dedicado ao incentivo à leitura. Esses agentes são contratados como temporários (atualmente são 52 em toda rede) e fazem atividades diárias de contação de histórias e rodízio de livros do 1º ao 5º ano.

São 20 minutos por dia, visitas uma vez por mês nas salas com um acervo móvel e outro momento mensal nas bibliotecas. Até o recreio é usado como tempo de leitura. As escolas contam ainda com o projeto Leitura em Família que seleciona títulos para as crianças levarem para casa. O índice de leitura é um dos indicadores de aprendizagem. Um dos agentes me mostrou os cadernos em que monitora o empréstimo de livros, as contações de história e a produção de fichas de leitura. Em novembro, eram 4.490 registros, uma média de cinco por aluno. No Brasil, 44% da população não leu um livro nos últimos três meses e 30% nunca comprou um livro, segundo a pesquisa Retratos da Leitura de 2016.

A formação de um comportamento leitor em todos os anos virou estratégia em Sobral no começo dos anos 2000. Um diagnóstico mostrou que quase metade (48%) das crianças chegava ao 3º ano analfabeta. No total, eram 6 mil do 3º ao 5º ano. A decisão em priorizar a leitura envolveu desde uma formação intensificada para os alfabetizadores e programas de correção de fluxo até uma mudança na organização da rede. As salas multisseriadas, comuns na zona rural, foram extintas. A nucleação reduziu de 98 para 38 o número de escolas. Atualmente são 55. Foram quatro anos para que a rede começasse a garantir a alfabetização na idade certa. Hoje, mais de 90% das crianças terminam o 1º ano lendo. No Brasil, segundo a Avaliação Nacional de Alfabetização, br1 em cada 5 alunos do 3º ano são analfabetos.

Seleção, avaliação e meritocracia

Como parte do processo, o sistema de seleção de diretores, baseado na indicação política, foi abolido. "Tínhamos gestores que eram analfabetos. Foi traumático, mas exoneramos todos", lembra a secretária municipal, Iracema Sampaio. A indicação foi substituída por um concurso em quatro etapas, que inclui prova escrita, uma avaliação, chamada de situacional, na qual os candidatos discutem problemas cotidianos das escolas, entrevistas individuais e avaliação de títulos.

É pré-requisito também que tenham sido professores. Os aprovados entram para uma lista de espera e são alocados pela secretaria de acordo com o perfil e envolvimento com a comunidade local. Os coordenadores pedagógicos passam pelo mesmo processo, mas a decisão de para qual unidade vão é dos diretores. Eles têm autonomia para admitir e demitir o coordenador.

Foi assim que Domingos Sávio Ferreira, que era professor de 4º ano de turmas com alto índice de analfabetismo, se tornou coordenador pedagógico em 2002 e depois diretor em 2009. Hoje ele está à frente da José da Matta e Silva, que tem 940 alunos de Educação Infantil ao 5º ano. A escola saltou durante os seis anos em que ele ocupa o cargo de 7,6 para 9,3 no Ideb dos anos iniciais.

Quando me recebeu em sua sala, Sávio mostrou as dezenas de troféus que ocupam dois andares de uma estante conquistados pela escola nas premiações do município e do estado. Logo na entrada, placas indicam a evolução do Ideb em cada edição. "A última ainda não está pronta", ele chama a atenção. Fez questão também de me corrigir por duas vezes quando errei a nota da escola baixando a média da José da Matta para 9,2. Em Sobral, cada décimo conta.

Nos dois dias em que visitei a escola, observei outra característica do modelo sobralense: a seriedade no uso do tempo. A rotina começa às 7 horas no turno da manhã e às 13 à tarde. A primeira atividade é o que Sávio chama de acolhimento. Os alunos são recebidos pelo diretor no pátio da escola com uma fala motivacional que inclui frases como: "Eu quero, eu posso, eu consigo ser campeão, ser vencedor". "Para mim, 50% do trabalho é motivação. Quem está motivado tem toda a capacidade de se desenvolver." Alguns minutos depois, todos os alunos já estão em sala.

O respeito à rotina se repete durante o recreio, a merenda e na saída. A ideia é ampliar o tempo em sala. Nos contraturnos, há aulas de reforço.

Sávio vivenciou o surgimento de outros dois pilares de Sobral, a política de incentivo e o sistema de avaliação. O pagamento de bônus começou em 2001 com um adicional para os alfabetizadores que batiam as metas definidas pela avaliação municipal. Ela consiste em duas provas ao final de cada semestre do 1º ao 9º ano, que avaliam conteúdos de Português e Matemática baseados na matriz da Prova Brasil. Há ainda uma redação. Para o 1º e 2º ano há um teste oral que mede a velocidade, precisão, ritmo e entonação de leitura.

A aplicação das provas e aferição dos resultados são feitas por uma equipe externa às escolas. Os examinadores uniformizados da Casa da Avaliação, uma espécie de autarquia da secretaria, coordenam o processo. O rito é rigoroso. Um pedido da reportagem de NOVA ESCOLA para fotografar os alunos fazendo o teste oral que acontecia na José da Matta foi negado porque poderia interferir no desempenho do aluno retratado. É justo.

O regime de provas é intenso. Além das avaliações municipais, há uma estadual, as nacionais, além de testes mensais e bimestrais. Os descritores da Prova Brasil são trabalhados nas formações externas e pela coordenação pedagógica com os professores. O foco nos anos iniciais é Língua Portuguesa e Matemática. Aulas de História, Geografia e Ciências acontecem uma vez por semana.

Foto: Tiago Henrique
Duas gerações do Ideb Depois de fazer a última edição da Prova Brasil em novembro do ano passado, Nicole de Souza, 11 anos, que era aluna do 5º ano da Emílio Sendim, disse para a mãe em casa: "Acho que fechei a prova". A irmã Letícia Paula de Souza, 10 anos, também estudante da escola, vai fazer o exame no ano que vem (Foto: Tiago Henrique)

Os resultados da "externa", como é conhecida a prova municipal, servem para traçar metas. Elas que balizam o pagamento do bônus fixo mensal para os professores e gestores, além de uma premiação anual chamada Escola Aprender Melhor. Funciona assim: os professores cujas turmas estão na média da rede recebem 200 reais. Os que estão acima da média, 250. Mesmo os que estão abaixo têm um incentivo fixo de 50. Isso para cada turno de quatro horas. O salário base da categoria é de 2.900 reais para oito horas semanais. Para os gestores, os valores são de 500, 400 e 300 reais.

 Foto:Tiago Henrique
Quatro livros por mês Quando se mudou para Sobral em 2014 vindo de São Paulo, Eduardo dos Santos colocou o filho na escola particular. Lucas Carvalho, 7 anos, passou o 1º ano sem conseguir se alfabetizar. Depois de ouvir sobre a fama da rede pública de Sobral, ele matriculou Lucas na José da Matta. Com acompanhameno individual e reforço no contraturno, em seis meses o garoto começou a ler. "Hoje ele pega quatro livros por mês para ler em casa", conta. (Foto: Tiago Henrique)

No prêmio são metas específicas. No edital de 2015, por exemplo, para o 1º ano uma delas foi que as turmas atingissem "90% em decodificação, 90% em leitura de texto e 85% em fluência de leitura". Para o 9º ano, que "nenhuma turma ficasse abaixo de 70% de acertos em Língua Portuguesa". Os professores cujas as turmas atingem as metas podem ganhar até 2.800 reais. Recebem também diretores e coordenadores (1.700 reais) e os secretários de escola (1.000). A rede calcula que distribuiu 500 mil reais em 2016, o equivalente a cerca de 0,5% dos gastos totais em Educação.

Um diretor experiente da rede como Sávio recebe 2.900 reais de salário base, adicional de gestor de 1.600 reais, que varia com o tamanho da escola, e um bônus de 500 reais. Total: salário médio de 5000 reais. Um professor pode chegar a média de 3.500. O valor é cinco vezes maior que a renda per capita média da cidade de 707 reais. A secretaria estadual também premia pelo Escola Nota Dez, que se baseia no teste estadual, o Spaece, aplicado uma vez por ano. Em 2013, a José da Matta recebeu 300 mil revertidos em bônus para os professores e livros para a biblioteca. "Dinheiro não é coisa ruim não, qual o problema? O incentivo é pequeno, é o sistema dizendo ‘reconheço o seu trabalho’. A meritocracia erra quando só responsabiliza e não dá apoio", diz o ex-secretário Júlio da Costa, que ocupou o cargo por 12 anos.

"A meritocracia erra quando só responsabiliza e não dá apoio" JÚLIO DA COSTA, ex-secretário de Educação de Sobral

O apoio que Júlio menciona vem por meio da estrutura de formação e acompanhamento das escolas. Em 2006, a rede criou a Escola de Formação Permanente do Magistério (Esfapem). Ela é responsável pela formação em serviço dos cerca de 1.700 profissionais da rede. São encontros mensais com duração de quatro horas que trabalham conhecimentos por área, mas também discutem a organização da rotina, do currículo, a elaboração das provas e a adaptação do material didático.Outro instrumento são as tutorias. Cada escola é acompanhada por dois coordenadores, um para no apoio à prática de sala e às rotinas pedagógicas e outro que auxilia nos fluxos administrativos. As visitas acontecem duas vezes por mês.

Foto: Tiago Henrique
Sávio recebe os alunos todos os dias com frases de motivação (Foto: Tiago Henrique)

Altas expectativas

Para entender como é o modelo nos anos finais, fui visitar o Colégio Dorilene Arruda. Inaugurado em 2014 em um dos bairros mais violentos de Sobral, entre dois territórios de gangues, já é o sexto melhor Ideb do país. O ensino integral vai de 7 horas às 16 horas, aposta da rede que reconhece a dificuldade em manter o altíssimo desempenho com os adolescentes. A média cai de 8,8 para 6,3, ainda bem acima do Brasil (4,5).

Na entrada, chama a atenção o cartaz com a missão, valores e metas da escola, ao lado de fotos dos alunos medalhistas em diversas olimpíadas. Foram 352 conquistadas. "Trabalhamos com uma consultoria com elementos de administração empresarial", conta a diretora Maria Sandra Teixeira.

A dúvida mais uma vez surgiu. Seria uma escola tecnicista? Mas a realidade se mostrou mais plural novamente. Na grade horária, as disciplinas tradicionais dividem espaço com aulas de protagonismo juvenil, projeto de vida, formação humana e introdução à pesquisa. Os alunos mantêm clubes com assuntos do seu interesse e escolhem temas de disciplinas eletivas que são ministradas uma vez por semana, como Inglês e rock e Facebook e Instagram. Em uma delas, foi discutida a PEC que limita os gastos públicos.

Foto: Tiago Henrique
À esquerda: Thalisson ao lado da mãe: "Prefiro a escola pública." Sávio recebe os alunos todos os dias com frases de motivação. À direita: Vanessa (no meio), Ingrid e Iury: bolsas no colégio particular (Foto: Tiago Henrique)

Fui assistir a uma aula de projeto de vida. Elas são dadas por professores regulares como o historiador Diego Farias. O tema para o 9º ano era ritos de passagem. Os textos de referência e os roteiros são selecionados e desenvolvidos pelos próprios docentes. Em 50 minutos, ele tratou de virgindade, futuro profissional, morte e uso de drogas, demonstrando conhecer a história pessoal de cada aluno. "Muitas vezes a condição que eles têm em casa dificulta que consigam ter uma perspectiva de futuro. Minha função aqui é ajudá-los a entender que as escolhas de hoje vão construir o que eles serão amanhã." Gostaria de ter tido aquelas aulas nas escolas em que estudei.

Conversando com os alunos, percebi o quanto eles levam a escola a sério, o que muitas vezes estimula a competição. Dois ficaram se comparando durante a entrevista e outra aluna disse ficar triste quando tira um 9,5. José Victor Torres, 14 anos, disse que se cansa depois das atividades no colégio, grupos de estudo e aulas de inglês à noite, mas que estava satisfeito porque quando entrou na escola queria ser jogador de futebol e mudou sua perspectiva. "Hoje tenho um sonho, quero ser engenheiro aeroespacial". Colega de turma de Victor, Samiramys de Lima disse que vai optar pela Engenharia Civil. "Aqui eles abrem caminhos. Vitor quer ir pra Lua, eu quero construir coisas na Terra. Não existe sonho grande e sonho pequeno. Pode ser qualquer coisa, mas seja o melhor". Em comum aos dois alunos além do sonho pela Engenharia, está a origem humilde: são filhos de um mecânico e uma manicure.

Foto: Tiago Henrique
"Tudo meu é com ele" A agricultora Benedita de Lima largou os estudos no 6º ano depois de engravidar. "Tinha vergonha do barrigão." Voltou aos 31 anos por insistência do filho, Cláudio, aluno do 5º ano da Antônio Custódio. "Ele vem no colégio à noite na minha aula. Em casa, sempre peço ajuda na tarefa. Ele tem paciência comigo. Tudo meu é com ele." (Foto: Tiago Henrique)

Uma das referências para os alunos do Dorilene é Vanessa Carvalho, 16 anos, filha de um padeiro e uma dona de casa com Fundamental incompleto. Ela ganhou três medalhas de ouro nas principais olimpíadas e saiu do colégio com uma bolsa integral para o Farias Brito, uma das maiores redes privadas do Ceará. Está cursando o 1º ano do Ensino Médio e quer ser aprovada no Instituto Tecnológico de Aeronáutica (ITA). A prática das escolas particulares de fazerem propostas para os alunos da rede pública está se tornando rotina em Sobral nos anos finais.

O assédio aos diretores e às famílias envolve até pagamento de aluguel de apartamentos e ajuda de custo para os adolescentes se mudarem para Fortaleza. "O Dorilene mudou minha forma de estudar e também meu comportamento. Era muito tímida e ansiosa, no colégio sempre estimularam que eu opinasse. Adorava as aulas de projeto de vida. Hoje, na escola particular, me sinto um número", diz Vanessa saudosa da rede pública. Outro exemplo é Thalisson Bastos que está no 7º ano. Ele acabou de receber a medalha de prata na Olimpíada Cearense de Matemática, considerada uma das mais difíceis do país. "Recebi propostas de bolsa dos dois maiores colégios particulares, mas passei minha vida toda em escola pública. Me sinto bem aqui e vou ficar."

O outro lado da relação entre ensino particular e público em Sobral é a migração dos alunos para as escolas públicas nos anos iniciais. Nas escolas que visitei, já há filas para a matrícula. A existência da rede privada em um ambiente de alto desempenho nas públicas se justifica apenas por status. Uma das coordenadoras da secretaria relatou a dificuldade que tem em convencer a irmã a tirar o sobrinho da escola particular em que ele vai ser reprovado e ainda não aprendeu a ler. Um mototaxista cujo filho é bolsista na rede particular disse que prefere não colocá-lo na pública "por causa da convivência".

Os depoimentos dos alunos do Dorilene sintetizam outras duas marcas de Sobral: a criação de altas expectativas e de exemplos dentro da própria rede. É o que acontece também na Antônio Custódio, escola na zona rural no distrito de Aprazível, a 25 quilômetros da cidade. O nível socioeconômico dos alunos, segundo a Prova Brasil, é baixo. Nas palavras da diretora Rosa Maria Ferreira ,"são filhos de pais analfabetos, que, muitas vezes, fazem a refeição do dia aqui". Quando pedi para a professora Liliane Ximenes Ponte do 5º ano explicar como a escola tinha nota 9,7 e 77% dos alunos nos níveis máximos em Matemática ela me disse: "Nós trabalhamos com a perspectiva do sucesso e não desistimos de nenhum aluno".

A prima de Liliane, Antônia Flávia da Ponte, é professora do 2º ano e um exemplo de "prata da casa" de Sobral que se repete em toda rede. Ela estudou na Antônio Custódio e começou fazendo faxina na escola por três anos, sonhando em ser professora. Conseguiu cursar duas faculdades e fazer especialização em Matemática enquanto trabalhava. É a primeira da família com ensino superior em três gerações. "Eu motivo meus alunos nos com base no meu próprio exemplo. Meu pai nunca me motivou, ele bebia e era violento, mas tive isso na escola. É muito importante para um professor conhecer a comunidade. Eu sou daqui, então sei como ensinar no contexto que eles precisam para aprender".

Foto: Tiago Henrique
As paredes decoradas da José da Matta(Foto: Tiago Henrique)

Dois degraus em uma escada de dez

Uma quase unanimidade entre todos os alunos que entrevistei foi ter achado a Prova Brasil fácil. O ex-secretário Júlio Alexandre critica o teste. "O nível da Prova Brasil é muito baixo. A régua do Ideb foi feita na crença de que o pobre, a maior parte do Brasil, não consegue aprender. Em Sobral, nós enfrentamos isso. Quando o trabalho começou, existia o mito na rede de que os professores eram ruins. Depois, eram as famílias desestruturadas, e, por fim, o aluno que era incapaz. A vítima tinha virado o culpado. Mas acho que só andamos dois degraus numa escada de dez."

Paula Louzano, doutora em Política Educacional em Harvard, concorda. "Não podemos acreditar que a Prova Brasil mede um conhecimento rigoroso e de padrão internacional. O que se espera de um aluno em Matemática no final do 9º ano no Brasil é próximo de um aluno no final do 5º no resto do mundo. Por exemplo, transformar uma fração em porcentagem e fazer uma divisão com números de dois dígitos, embora só 16% dos nossos alunos no final do 9º ano sejam capazes de realizar essas operações. Não me espanta que os alunos de Sobral se sobressaiam. É uma rede organizada que consegue entregar o básico para todos. Devemos aprender com eles e usar o conhecimento acumulado para ir além."

Para Júlio, o desafio de Sobral é criar novas metas de aprendizagem. "Estamos construindo um currículo novo, que dialoga com a Base Nacional, mas tem muito do que acreditamos. Buscamos exemplos fora, como o modelo canadense que trabalha com altas expectativas. Incluímos descritores de avaliações internacionais como o Pisa. A desigualdade acontece quando acreditamos que nosso aluno não pode aprender o mesmo que uma criança de um país desenvolvido. Para sair do zero, do buraco, contamos com muitos parceiros e modelos que fomos 'sobralizando', mas agora queremos ampliar a autonomia."

Para a secretária Iracema Sampaio, ainda há desafios nos anos finais e na Educação Infantil. O modelo integral para os adolescentes conta com apenas duas unidades. A ideia é construir mais 12 com capacidade para 500 alunos. Os custos vão de 2,4 a 7 milhões de reais por escola. Na Educação Infantil, 53% das crianças até 3 anos ainda estão fora dos centros. A meta é construir mais nove. Sobral investia no começo dos anos 2000 em torno de 26,5% do orçamento em Educação. Hoje, o gasto supera os 30%.

"O modelo de formação nas faculdades é distante das realidades que temos." VEVEU ARRUDA, prefeito de Sobral

O meu último entrevistado foi o prefeito José Clodoveu de Arruda, o Veveu. Ele está deixando o cargo que será assumido por Ivo Gomes, que foi secretário na gestão do irmão Cid, ex-ministro que iniciou as mudanças no final dos anos 1990. É dele a polêmica expressão "feijão com arroz". "Menciono o feijão com arroz como crítica a um modelo de formação de educadores nas faculdades distante das realidades que temos. A transformação em Sobral foi construída aos poucos, com erros e acertos, ouvindo muito quem está no chão da escola e verificando o que funcionava."

Quando entrei no ônibus para sair de Sobral, minha cabeça fervilhava com o que vi em uma semana. Organizando os pensamentos, percebi que estava empolgado. Um dos esforços no jornalismo é equilibrar o envolvimento emocional com uma atitude investigativa. Mas, sobretudo, para nós que trabalhamos com Educação, há sempre o desejo de achar uma história que inspire a transformação. Em Sobral, com todas as suas surpresas, tive contato um dos exemplos mais consistentes de uma escola de qualidade para todos. Foi bonito ver uma criança de 11 anos incentivar a mãe a voltar a estudar. Outra, com dificuldade na alfabetização, passar a ler quatro livros por mês. O eterno sonho de ser jogador de futebol substituído pela Engenharia Aeroespacial. Uma faxineira se tornar professora na própria escola que estudou. É a conciliação, ainda cheia de imperfeições, da escola brasileira com o povo brasileiro.

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