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Assim se faz uma escola acolhedora

A trajetória de um colégio referência revela avanços e desafios persistentes na aceitação das sexualidades

POR:
Wellington Soares
Alunos fazem intervenção durante o intervalo

É hora do intervalo no Centro Educacional Asa Norte (Cean), escola pública de Ensino Médio de referência em Brasília. No refeitório, um grupo de 14 alunos - alguns deles se identificavam como LGBT (Sigla que designa lésbicas, gays, bissexuais, transexuais etc) - sobe no palco. Estávamos á naquele dia de julho. Registramos a cena (acima). Com frases de aceitação em cartazes, eles falam aos colegas: "Ninguém aqui escolheu sofrer preconceito, nós só queremos ser aceitos". Em outro lado do pátio, um casal de namoradas aplaude. "Não era assim quando eu estudei aqui, não", comenta Bruno Cavalcanti, ex-aluno que veio para participar de um debate com algumas turmas.

Hoje, o Cean é conhecido em Brasília como uma escola "aberta" - expressão usada por parte dos alunos - ou "de gay" - adotada por quem não compreende muito bem o que acontece ali. Na prática, as duas se referem à mesma coisa: a instituição se esforça para abraçar a diversidade. Há resultados impressionantes, a ponto de a escola ser considerada por alguns como o único lugar seguro para a aceitação da própria sexualidade. "Aqui é muito diferente das outras escolas e de todo o ambiente lá fora. Queria que eu pudesse ser em casa tão leve quanto eu sou aqui", confessa, chorando, M., do 1º ano do Ensino Médio.

Mas não foi sempre assim. O atual clima da escola é resultado de um longo processo e de ações em diversos níveis. O disparador da mudança foi a história do próprio Bruno. Em 2012, ele era estudante do 3º ano e o Cean era a terceira escola por onde ele passava desde o fim do Fundamental. "Em todos os lugares em que estudei, sofri algum tipo de preconceito", conta. O Cean não foi exceção. O jovem era perseguido por um grupo de meninos. Certo dia, um dos rapazes o empurrou. "Ele me chamou de 'viadinho', me ameaçou", recorda. Colegas intervieram para conter a agressão. O conflito acabou, mas Bruno preferiu ficar calado. "Não queria avisar a direção.Tinha medo de várias coisas: que eles apoiassem o homofóbico, que eu acabasse apanhando mais ou até que eles chamassem meus pais, que ainda não sabiam que eu era gay."

O silêncio deu lugar à surpresa quando, dias depois, o jovem foi chamado à sala da direção. Lá, a vice-diretora Graça de Paula Machado o esperava. Os alunos do grêmio haviam relatado o episódio e pediam providências. O desfecho foi o oposto do antecipado por Bruno: Graça mediou o conflito, ouviu os dois alunos e, juntos pensaram em uma reparação do ocorrido.

A solução pacífica ajudou a colocar um ponto final naquela ocorrência. Mas era necessário mais. Os estudantes, organizados, exigiram outras ações para abordar o tema e evitar que Bruno e outros colegas fossem atacados.

 A saída foi a realização de um intervalo estendido. Com o apoio da direção, os meninos organizaram uma pequena mobilização e um debate, com convidados da Universidade de Brasília (UnB), localizada ao lado da escola.

No contato com Bruno, Graça repensou como a escola acolhia os estudantes LGBT

A discussão fora do armário 

O debate abriu os olhos da equipe gestora. "Os alunos se sentiram à vontade para se expressar e eu notei que, até então, a questão era velada dentro da escola", conta Graça.

É comum que professores e gestores afirmem que não há estudantes homossexuais na escola e que, por isso, não há razão para trabalhar o tema. O argumento é frágil por dois motivos. Um: o tema se justifica por si só. "O respeito e o combate à LGBTfobia são questões que precisam ser abordadas para promover uma sociedade mais justa. Isso já seria suficiente para que elas estivessem presentes na Educação Básica", justifica Maria Cristina Cavaleiro, professora da Universidade Estadual do Norte do Paraná (Uenp). Dois: achar que não existem alunos LGBT não significa que eles não estejam ali. "Ninguém é obrigado a dar atestado de sexualidade", diz Maria Cristina. Conversando com os alunos do Cean isso fica claro. "Todo mundo fala que aqui tem muitos gays, mas em uma escola vizinha também tem, só que ninguém admite", conta um estudante.

Enxergar os alunos é uma forma de observar as violências sofridas por eles. E não são poucas. Segundo a Pesquisa Nacional sobre o Ambiente Educacional no Brasil, 60% dos estudantes LGBT se sentiram inseguros na escola no último ano por causa de sua orientação sexual, 73% foram agredidos verbalmente e 27% fisicamente. Sobre as medidas tomadas pela escola, 54% afirmaram que a instituição não fez nada. "As escolas veem como problema os jovens LGBT, não as violências que eles sofrem", defende Toni Reis, da Associação Brasileira de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais (ABGLT), que realizou a pesquisa.

Impactada pela participação dos alunos no evento organizado pelo grêmio, Graça decidiu abraçar o tema. O encaminhamento mais urgente era determinar como a escola lidaria com os casos de LGBTfobia. O primeiro movimento já dava um recado claro: a postura da vice-diretora ao lidar com o agressor de Bruno mostrou que ataques não seriam tolerados.

O PPP garante regras iguais para o namoro de casais de todas as sexualidades

No coração do PPP 

A sala da direção se transformou em um espaço de acolhimento. Tanto ex-alunos quanto atuais estudantes testemunham o esforço da equipe gestora. Sempre que precisam conversar, mesmo sobre problemas que tenham passado fora da escola ou com a família, os alunos são bem-vindos. Um combinado garante que a troca seja produtiva: o que é conversado ali só chega ao conhecimento dos pais caso os alunos aceitem. Toda a mobilização não deixou de lado o cuidado com a aprendizagem. Tanto no Enem quanto nos vestibulares, os alunos do Cean costumam se destacar.

Um desafio era garantir que os avanços prosseguissem e não se perdessem. A saída foi institucionalizar a questão. A pauta foi levada às reuniões pedagógicas e do conselho escolar. Ao longo do tempo, novas ações foram se desenrolando: os alunos organizavam debates e intervenções durante os intervalos; uma oficina com convidados externos passou a acontecer durante o contraturno e professores incluíram o tema em seu planejamento. A ideia era atingir todos os alunos.

Aos gestores coube garantir que o respeito à diversidade passasse a ser uma das diretrizes da escola. O tema foi inserido no projeto político-pedagógico (PPP) e todas as regras válidas para estudantes heterossexuais passaram a valer também para alunos de outras sexualidades. Namorar, por exemplo. Dar as mãos, passar um tempo juntos e beijos rápidos são liberados para todos. "Vale a regra do bom senso, não permitimos nada exagerado", conta a gestora.

"Os alunos de 1º ano vêm de outras escolas e, por isso, é com eles que fazemos um trabalho mais sistemático hoje", diz. Além de participar de atividades promovidas pelos colegas, os novatos debatem o tema em sala de aula. Grande parte desse trabalho é tocado pela professora Elimárcia Leite, de Filosofia. A discussão entra como parte do currículo. "Quando discutimos identidade no mundo contemporâneo, eles mesmos trazem à tona a sexualidade", conta. A preocupação, segundo ela, é qualificar o debate. "Tentamos superar a discussão baseada no 'eu acredito' do senso comum. Trabalhamos com o conhecimento científico sobre o tema, como a escola deve fazer.

Nem tudo é perfeito

"A escola se propõe a ser mais aberta, mas nem sempre consegue", nos contou um dos docentes. Se comparado com outras escolas - sobretudo com aquelas de onde os novos alunos vêm -, o Cean parece um oásis do convívio da diversidade, mas ainda há problemas. "É claro que temos que ouvir piadinhas. Não existe lugar ideal para os LGBT", comenta L., do 3º ano. Durante um debate após o intervalo, uma aluna provoca: "É uma pena que as pessoas que precisam ouvir isso na minha sala não estão aqui."

Entre os desafios que persistem, o caso mais emblemático é o de G., aluno transexual do 1º ano. Ele narra duas dificuldades: a primeira na adoção do nome social, agora já aceito. A segunda no uso do banheiro adequado a sua identidade de gênero. Ele se sente desconfortável no feminino e foi desaconselhado pela vice-diretora a frequentar o masculino. Na conversa, Graça perguntou: "Você acha que é prudente usar o masculino e, de repente, ouvir uma piada?". "Eu evito ir ao banheiro dentro da escola", conta o garoto.

A própria Graça admite limitações: "Minha formação é tradicional, preciso batalhar para desconstruir muita coisa internamente."Diante de tudo o que foi feito, parece faltar pouco. São avanços difíceis, mas fundamentais para tornar a escola efetivamente aberta.

Dúvidas frequentes 

O que fazer se um aluno LGBT é xingado ou agredido por um colega?
O mesmo que em outros conflitos: é necessário mediá-lo e encontrar uma maneira de retratação. Piadas e brincadeiras "inocentes" também contam como agressão. Na conversa, atenção redobrada para não culpar o agredido pelo ataque (é comum que o "jeito" do aluno seja questionado). Pense em trabalhar o tema tolerância de maneira mais sistemática na instituição.

É aconselhável conversar com os pais de um aluno LGBT?
Antes, fale com o próprio aluno. Explore o que ele mesmo sabe sobre sua sexualidade - que pode ser diferente do que você imagina - e sua relação com a família. "Tirar um estudante do armário" é a pior saída possível: não são raros os casos em que a própria casa é um espaço de violências ainda maior do que a escola.

Quais disciplinas devem abordar o tema em sala de aula?
Os recortes podem ser feitos em diferentes áreas. É comum que elas recaiam nas disciplinas de ciências humanas, com questões sobre identidade em Filosofia e sobre movimentos sociais em História e Sociologia. Nas outras, é importante garantir a visibilidade: nos problemas de Matemática, por exemplo, o casal que vai à feira não precisa ser sempre heterossexual. 

Como lidar com reclamações sobre comentários de professores? 
Mais uma vez, ouvir o aluno e não duvidar de seu relato é fundamental. Depois, converse com o professor: tente não expor o estudante e se certifique de que ele não sofrerá represálias. Procure mostrar a violência embutida nos comentários homofóbicos. É comum que o docente não se dê conta disso.

Fotos: Renan Rego