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Três bases para um novo modelo de formação

Os próprios professores devem ter maior peso na capacitação de seus pares, colocando o conhecimento profissional no centro da formação e construindo um espaço que junte a realidade das escolas da rede com o conhecimento acadêmico

POR:
António Nóvoa
António Nóvoa. Foto: Marina Piedade
António Nóvoa Reitor da Universidade de Lisboa

Nas últimas duas décadas, verificou-se uma importante mudança nas políticas e práticas de formação de professores. Professor reflexivo, pesquisador, desenvolvimento profissional docente e outros termos deram corpo a uma série de ideias e de propostas inovadoras (Tardif, Borges & Malo, 2012). Hoje é com algum desconforto que olhamos para as mudanças que aconteceram e surge a necessidade de lançar as bases para um novo modelo de formação.

David Labaree (2003) afirma que a retórica progressista é dominante nessa área, mas que as práticas que deveriam acompanhá-la são difíceis de encontrar. Segundo ele, há várias razões para esse fato: os professores e os programas de formação têm um estatuto desvalorizado, o ensino é uma profissão de enorme exigência, mas que parece fácil aos olhos de toda a gente, os professores e os pedagogos são vistos, ao mesmo tempo, como defensores do sistema escolar vigente - ineficaz, desigual e burocrático - e como sonhadores por causas e utopias irrealizáveis.

Uma reflexão de Kenneth Zeichner (2012) explica que tem havido duas visões distintas. Por um lado, há movimentos de crítica às instituições e aos programas de formação que põem em causa a necessidade de um investimento forte na profissão e na formação. Esses movimentos defendem que é mais simples e eficiente preparar professores numa perspectiva técnica, sobretudo por meio de uma aprendizagem profissional, em escolas, ao lado de pares mais experientes. Por outro lado, há tendências que afirmam a necessidade de o professorado ser visto como uma profissão baseada no conhecimento e que, por isso, requer um período longo de preparação, com acesso a uma carreira e a dinâmicas de desenvolvimento profissional. Alguns autores recusam as tentativas de desvalorização da docência e consideram que os programas de formação centrados nas escolas só adquirem um potencial transformador se estiverem enquadrados na lógica universitária e de reforço da profissionalização docente.

Sempre defendi a valorização do professorado como profissão complexa, que exige formação intelectual e universitária (Nóvoa, 2002, 2011). Considero os modelos atuais ultrapassados por lhes faltar coerência e ligação ao trabalho pedagógico. Assim, defenderei três bases para um novo modelo de formação.

1. Por uma formação a partir de dentro

Escolhi essa frase para a primeira proposta para sublinhar a necessidade de os professores terem um lugar predominante na formação dos colegas. Devido à expansão dos sistemas de ensino, tornou-se inevitável proceder ao recrutamento, num tempo curto, de muitos professores, nem sempre selecionados, formados e integrados nas escolas com o rigor que seria desejável. Tentou-se compensar a menor preparação recorrendo a especialistas que, de algum modo, serviam para controlar os professores ou corrigir insuficiências e incompetências.

Pesquisadores, gestores, peritos do currículo e da avaliação, autores de materiais didáticos e tecnólogos da Educação, entre outros, ocuparam esse terreno e, num certo sentido, foram substituindo os próprios professores nas tarefas da formação.

A presença desses grupos trouxe um enriquecimento do campo, mas à custa de uma certa marginalização dos professores. É por isso que considero necessário reforçar o papel dos docentes na sua capacidade de decisão e de intervenção também nos programas de formação (Nóvoa, 2009).

O exemplo dos médicos e dos hospitais escolares e o modo como está concebida a formação médica - formação inicial, indução e formação em serviço - talvez nos sirva de inspiração.

Nesse propósito, merece realce um apontamento de Lee Shulman, intitulado Uma Proposta Imodesta. Ele explica que um dia acompanhou a rotina de um grupo de estudantes e professores de Medicina num hospital escolar. O grupo observou sete doentes, estudando cada caso como uma lição. Havia um relatório sobre o paciente, uma análise da situação, uma reflexão conjunta, um diagnóstico e uma terapia. No final, o médico responsável discutiu com os internos (alunos mais avançados) a forma como tinha decorrido a visita e os aspectos a corrigir. Em seguida, realizou-se um seminário didático sobre a função pulmonar. O dia terminou com um debate sobre a realidade do hospital e as mudanças organizacionais para garantir a qualidade dos cuidados de saúde.

Lee Shulman escreve que viu uma instituição refletir coletivamente sobre o trabalho, mobilizando conhecimentos, vontades e competências. Esse modelo constitui não só um importante processo pedagógico mas também um exemplo de responsabilidade e compromisso. Naquele hospital, a reflexão partilhada não é mera palavra. Ninguém se resigna com o insucesso. Há um envolvimento real na melhoria e na mudança das práticas hospitalares.

Advogo um sistema semelhante para os professores. É inútil escrever textos atrás de textos sobre o professor reflexivo se não concretizarmos a presença da profissão na formação.

É fundamental assegurar que a riqueza e a complexidade do ensino ganham visibilidade, do ponto de vista profissional e científico, adquirindo um estatuto idêntico a outros campos de trabalho acadêmico e criativo. Ao mesmo tempo, é essencial reforçar dispositivos e práticas de formação de professores baseadas numa pesquisa que tenha como problemática a ação docente e o trabalho escolar.

Não advogo qualquer deriva pragmática, tão do agrado dos meios conservadores, que procuram definir o professorado como uma atividade puramente técnica. Defendo, sim, que as nossas propostas teóricas só fazem sentido se forem construídas dentro da profissão e se contribuírem para enriquecer o pensamento e a prática dos professores.

2. Pela valorização do conhecimento docente

A proposta defendida no item anterior implica uma valorização do conhecimento docente. Se concebermos o ensino como uma atividade de transmissão de um conhecimento preexistente, então o ofício poderá ser aprendido apenas com exercícios práticos. Mas se, ao contrário, entendermos o ensino como uma atividade de criação, que tem o conhecimento como matéria-prima porém traz a elaboração de um conhecimento novo no próprio ato pedagógico, então é necessário conceber modelos universitários de formação (Pérez Gómez, 2010).

Retomemos o insulto que Bernard Shaw (1900) lançou, há mais de um século, nas suas Maxims for Revolutionists: "Quem sabe faz. Quem não sabe ensina". Muitos repetem essa máxima, mas poucos reparam nas frases seguintes: "A atividade é o único caminho para o conhecimento". Mais à frente: "Os homens são sábios na proporção não da sua experiência mas da sua capacidade para pensar a experiência".

Shaw sugere que é com base na atividade, na reflexão sobre ela e sobre a experiência que se elabora um determinado conhecimento. É um ponto central para pensar o conhecimento específico dos professores. Lee Shulman (1986) responde a Bernard Shaw: "Quem sabe faz. Quem compreende ensina".

O conceito de compreensão é fundamental: compreensão de um determinado conhecimento ou disciplina - e compreender é mais do que possuir o conhecimento -, compreensão dos alunos e dos processos de aprendizagem. É nessa dupla lógica que se funda o conhecimento profissional docente.

Por isso é tão importante combater a ideia de que ensinar é uma tarefa fácil, ao alcance de qualquer um. Enquanto o ensino for considerado uma atividade natural, será difícil valorizar os professores e consolidar a dimensão universitária que sua formação deve ter (Labaree, 2011).

Tal como em várias outras profissões, também no ensino é necessário construir pedagogias e lógicas de formação, que devem juntar, num espaço harmonioso e coerente, quatro dimensões: formação geral, base humanística e científica, estudo da prática pedagógica e exercício supervisionado da atividade docente (Goodlad, 2004).

Nesse sentido, é indispensável promover a aproximação das escolas e da prática docente, reforçando as "componentes clínicas" com base em uma relação mais próxima entre os jovens em formação e os professores em exercício.

Os professores devem combater a dispersão e valorizar o próprio conhecimento profissional, construído com base em uma reflexão sobre a prática e em uma teorização da experiência.

É no coração da profissão, no ensino e no trabalho escolar, que devemos centrar o nosso esforço de renovação da formação de professores.

3. Pela criação de uma nova realidade organizacional

A emergência do professor como coletivo é uma das principais realidades do início do século 21. Já se tinha assistido a essa evolução noutras profissões, porém no ensino tudo é ainda muito incipiente.

Grande parte das nossas intenções é inconsequente se a profissão continuar marcada por fortes tradições individualistas ou por rígidas regulações externas. Hoje, a complexidade do trabalho escolar exige o desenvolvimento de equipes pedagógicas. A competência coletiva é mais do que o somatório das competências individuais.

Vou deter-me apenas em dois aspectos. Em primeiro lugar, a ideia da escola como o lugar da formação dos professores, como o espaço da análise partilhada das práticas, é uma evolução que obriga à existência de escolas com capacidade e condições para cumprirem essa missão (Zeichner, 2010). Estamos perante um novo desafio, com enormes consequências: a fusão dos espaços acadêmicos e institucionais das escolas e da formação de professores. Defendo a criação de uma nova realidade organizacional no interior da qual estejam integrados os professores (da rede) e os formadores de professores (universitários).

Nos últimos anos, na área da Medicina, foram desenvolvidos centros acadêmicos de Medicina que juntam, numa mesma instituição, três dimensões fundamentais: a prestação de serviços de saúde, a formação dos médicos e a pesquisa científica.

Julgo que é um excelente exemplo para o tipo de organização que precisamos criar na nossa área: centros acadêmicos de Educação que juntem, no mesmo espaço, a escola, a formação de professores e a pesquisa. O segundo aspecto prende- se à ideia da docência como coletivo no plano do conhecimento e da ética. Não há respostas feitas para o conjunto de dilemas que os professores são chamados a resolver numa escola marcada pela diferença cultural e pelo conflito de valores. É importante assumir uma ética profissional que se constrói no diálogo com os colegas.

A colegialidade, a partilha e as culturas colaborativas não se impõem por via administrativa ou decisão superior. A formação de professores é essencial para consolidar parcerias no interior e no exterior do mundo profissional e para reforçar o trabalho cooperativo. O exemplo de outras profissões pode inspirar os professores: a forma como elas construíram parcerias entre o mundo profissional e o universitário, criaram processos de integração dos mais jovens, concederam uma grande centralidade aos profissionais mais prestigiados ou se predispuseram a prestar contas públicas do seu trabalho são realidades para as quais vale a pena olhar com atenção.

É inútil apelar à reflexão se não houver uma organização das escolas que a facilite.

Da mesma forma, é inútil reivindicar uma formação mútua, interpares, colaborativa, se a definição das carreiras docentes não for coerente com esse propósito. E é inútil propor uma qualificação baseada na investigação e parcerias entre escolas e instituições universitárias se os normativos legais persistirem em dificultar essa aproximação.

Aqui ficam, então, os elementos e as bases de uma proposta que sugere mudanças de fundo na formação de professores.

É preciso ter consciência de que os problemas da Educação e dos docentes não serão resolvidos apenas no interior das escolas. É necessário um trabalho político, uma maior presença dos professores no debate público e uma consciência clara da importância da Educação para as sociedades do século 21.

O reforço da profissão docente e da sua formação é fundamental. Mas será que queremos mesmo ter bons professores? O que temos feito por isso?

Temos sido capazes de atrair os melhores alunos para a profissão? Estamos lhes oferecendo uma boa formação? Somos capazes de motivá-los? Mobilizamo-nos para valorizá-los socialmente? Apoiamos a sua ação profissional? Queremos melhorar as suas condições de trabalho? Tentamos com êxito proteger a colegialidade e a imagem pública da profissão? Ou será que não temos feito nada disso?

Referências bibliográfica

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