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A diferença que um Coletivo Feminista fez na minha escola

O Coletivo Feminista é um espaço formativo para educar meninas e meninos para uma cultura de tolerância e igualdade

POR:
Priscila Arce
Ação do Coletivo Feminista customizou roupas com mensagens que pediam respeito às mulheres e espalhou pelas salas de aula da EMEF Sebastião Francisco O Negro, em São Paulo   Foto: Acervo pessoal 

Vivemos um momento delicado na história da Educação brasileira, em que muitos querem decidir o que a escola deve ou não ensinar. A escritora Hannah Arendt define tais situações como “crises periódicas” na Educação. Quando uma crise acontece, diz ela, precisamos refazer nossas perguntas e não tentar respondê-las com ideias pré-concebidas, ou seja, imbuídas de preconceitos. 

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Diariamente ouvimos notícias tristes sobre o aumento da violência contra as mulheres, apesar de muitas conquistas dos movimentos sociais e feministas. A lei nº 11.340/06, mais conhecida como Lei Maria da Penha, estabelece punições para casos de violência no ambiente doméstico e familiar, englobando a violência física, sexual e até psicológica. Maria da Penha Fernandes, que foi vítima de violência doméstica e lutou pela criação desta lei, trabalha como coordenadora da Associação de Estudos, Pesquisas e Publicações da Associação de Parentes e Amigos de Vítimas de Violência (APAVV), no Ceará. Ela defende a educação formal desde os níveis mais básicos de escolarização como forma de discussão e prevenção de questões sociais que têm impacto na sociedade.

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O desafio na escola começa com a ausência de respeito ao outro e, de maneira mais intensa, com a ausência de respeito às mulheres e com a identidade de gênero assumida por ambos os sexos. Em minha escola, nós percebíamos que os meninos exercitavam a cultura machista no tratamento dado às meninas e aos meninos que não se identificavam com o gênero masculino. Compreendemos esse desafio não como mais uma demanda de trabalho que não pertencia à escola, mas como um problema diante do qual não poderíamos fazer vista grossa e fingir que não era conosco. A escola é perpassada pelas demandas da sociedade e sofre as consequências na prática, quando o debate não acontece fora dela. 

Em suas aulas, os professores lidavam frequentemente com dúvidas em relação à orientação sexual, identidade de gênero, sexualidade e a diferença em relação ao tratamento dado a meninas e meninos – nas mídias, em casa, na rua, na escola e outros espaços sociais. Passamos em equipe a refletir sobre a necessidade de lidar com essas dúvidas em projetos e aulas pontuais, assim como criar um espaço de referência que funcionasse como apoio e intensificação dessas questões com orientações educativas para a formação das crianças e jovens e prevenção de formas de violência e discriminação de gênero.

Movimento Femi HR na EMEF Sebastião Francisco O Negro, em São Paulo   Foto: Acervo pessoa

Trabalho de pintura e criação de mensagens em varal de roupa que foi parte de ação do Coletivo Feminino na EMEF Sebastião Francisco O Negro   Foto: Acervo pessoal

Em 2017, um grupo de professores assumiu voluntariamente esses encontros e buscou ajuda de colegas que haviam enfrentado essa situação na rede de ensino. Nós nos inspiramos no Movi-Femi HR para criar um time que ajudasse a combater o tratamento desrespeitoso que as meninas recebiam diariamente na escola e na sociedade. Inicialmente coordenado pelo professor Eduardo Kawamura, esse grupo é formado atualmente por estudantes, que oferecem aulas fundamentadas em leituras e relatos de suas experiências aos meninos e meninas. Da mesma maneira, esses alunos denunciam práticas de racismo e homofobia que deveriam deixar de existir, fortalecendo o ambiente de respeito ao outro em nossa escola.

Dessa iniciativa nasceu o desabafo de muitas meninas, que não toleravam mais a forma como eram tratadas – revelando o assédio velado sofrido todos os dias em diferentes espaços sociais. Através da interlocução, elas tomaram consciência que não poderiam tratar com normalidade as situações relatadas, o típico “deixa para lá”.

O Coletivo Feminista se caracteriza como espaço formativo para educar meninas e meninos para uma cultura de tolerância e respeito. Ele orienta o debate sobre a igualdade política, social e econômica entre os sexos.

O grupo, que desde o ano passado realizava encontros periódicos, tornou-se este ano projeto oficial da escola, com encontros semanais no contraturno das aulas. A escola assume o compromisso do debate e estudo dessas questões em sala de aula, mas a presença do coletivo intensifica as ações e funciona como suporte para a tomada de decisão quando são identificados casos de discriminação e violência. Dá apoio também a estudos de textos teóricos, leitura crítica da imagem da mulher e analisa a linguagem veiculada nas mídias em geral, com produção de material educativo e informativo.

Entre as ações realizadas pelo Coletivo Feminista para conscientizar a comunidade do entorno, as meninas colaram lambe-lambes com mensagens pelas ruas do bairro. Posteriormente, houve um debate sobre essa interação, a partir de mensagens deixadas nos cartazes – algumas, inclusive, com uma retórica de intolerância e não aceitação da ação. E também realizaram uma instalação de arte na escola usando peças de roupas que normalmente são alvo de julgamento e intolerância de gênero, com mensagens críticas e políticas que interagiam com o espaço e o público alvo – fazendo com que todos experimentassem diferentes sensações.

Oficina de confecção de lambe-lambes na EMEF Sebastião Francisco O Negro, como parte de ações para pedir mais respeito às mulheres   Foto: Acervo pessoal

Nós acreditamos que debates constroem progressivamente uma narrativa contada por mulheres, a partir da liberdade e da compreensão dos estereótipos envolvidos em frases como “Isso é coisa menino” e “Menina não faz essas coisas”. Essa conversa engloba ainda identidade de gênero, discriminação de gênero, direito das mulheres, violência doméstica, assédio, misoginia, relacionamento, expectativas de gênero (as tarefas domésticas, por exemplo). No percurso compreendemos a necessidade de tratar as questões de gênero com toda equipe, pois nem todos tiveram acesso a essa formação durante a vida.

Uma formação que nega a diversidade e igualdade de gênero compromete a formação das crianças para um mundo mais justo entre mulheres e homens.

Tenho orgulho em dizer que hoje, em nossa escola, meninas identificam e relatam situações que consideram assédio, os meninos frequentam sem medo as aulas de balé, há meninas que ensinam futebol aos meninos e meninos que se sentem à vontade para ir à escola com maquiagem, além de uma infinidade de coisas que acontecem porque a cultura está em permanente transformação, como diz a escritora nigeriana Chimamanda Ngozie Adichie, autora de “Sejamos todos feministas”.

A escola se compromete em reconhecer os estudantes como são e não como deveriam ser, de acordo com expectativas injustas de gênero. Por isso, a primeira conversa franca que eles têm sobre o assunto acontece, muitas vezes, na escola e não em casa. E o que aprendi como diretora de escola com tudo isso? Que se na minha época de estudante existisse um coletivo feminista na escola seria uma mulher muito mais poderosa do que sou hoje!

 

Para Saber Mais

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Sejamos Todos Feministas. Trad. Christina Baum. Companhia das Letras. 2014. Disponível gratuitamente em diversas livrarias online.

ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Para Educar Crianças Feministas: Um Manifesto. Trad. Denise Bottman. Companhia das Letras.2017.

ARENDT, Hannah. Crise da Educação. Disponível em: http://www.gestaoescolar.diaadia.pr.gov.br/arquivos/File/otp/hanna_arendt_crise_educacao.pdf. Acesso em 07 fev. 2018.

PASINATO, Wânia. Por Um Resgate da Trajetória Feminista: Entrevista com Maria da Penha Fernandes. Rev. bras. segur. pública | São Paulo v. 11, n. 1, 98-108, Fev/Mar 2017. Disponível em: http://www.forumseguranca.org.br/publicacoes/por-um-resgate-da-trajetoria-feminista-entrevista-com-maria-da-penha-maia-fernandes/. Acesso em 06 fev. 2018.

SOARES, Nana. Em Números: A Violência Contra a Mulher Brasileira. Disponível em: http://emais.estadao.com.br/blogs/nana-soares/em-numeros-a-violencia-contra-a-mulher-brasileira/. Acesso em 05 fev. 2018.

Priscila Damasceno Arce é diretora da EMEF Sebastião Francisco O Negro, na zona leste de São Paulo-SP. Estudou em escola pública a vida toda e também foi professora e coordenadora pedagógica. É especialista em alfabetização e mestranda em formação de formadores pela PUC-SP.

Ação do Coletivo Feminista da EMEF Sebastião Francisco O Negro espalhou cartazes lambe-lambe pelo bairro para pedir respeito às mulheres  Foto: Acervo pessoal

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