Fileiras na sala de aula, nunca mais
Três escolas que abandonaram o formato de organização por fileiras contam como a experiência mudou a dinâmica na sala de aula
POR: Laís SemisÉ possível ter uma escola inteira fora do modelo tradicional de organização? Sem carteiras enfileiradas, sem ter a lousa e o professor sendo os principais focos da aula? A ideia de abandonar completamente o modelo das salas de aula organizadas por fileiras pode ser chocante para a maioria dos educadores. Mas algumas escolas já vivem (bem) em novos formatos. “É uma mudança de cultura”, afirma Célia Senna, formadora de professores da consultoria INovAÇÃO.
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Na Escola Municipal Waldir Garcia, em Manaus (AM), a inspiração veio das experiências de outras instituições escolares, como a Escola da Ponte, em Portugal. “Quando passamos a estudar outras escolas, vimos que éramos muito tradicionais”, conta a diretora Lúcia Cortez de Barros Santos. Havia filas em todo lugar: para organizar a entrada, para atravessar a escola até a quadra e para organizar os alunos na sala de aula. Não mais.
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A Ponte também foi a inspiradora da EMEF Desembargador Amorim Lima, em São Paulo. Tudo começou com a publicação das crônicas de Rubem Alves, no jornal Correio Popular, de Campinas (SP), sobre a escola. Mais tarde, elas dariam origem ao livro “A escola com que sempre sonhei sem imaginar que pudesse existir”. A partir dessas leituras, o imaginário da diretora Ana Elisa Siqueira começou a “maquinar” como aquela experiência portuguesa poderia inspirar a realidade de sua escola. “Não copiamos o modelo, mas buscamos inspiração para os desafios que a gente tinha e, a partir daquelas experiências, desenhar nosso projeto com outras abordagens”, diz Ana. Mas a Amorim Lima tinha um desafio imenso. “Precisávamos sair de um modelo tradicional em que o professor só se preocupava com as suas turmas e seu trabalho para ter um espaço coletivo”, relembra.
As dificuldades do modelo tradicional
Na Waldir Garcia, as carteiras eram modelo universitárias, com os tampos da mesa integradas às cadeiras. O espaço limitado da superfície de apoio impedia que os alunos usassem, de forma confortável, um livro e um caderno apoiados sobre ela ao mesmo tempo. Também não era fácil usar os netbooks que a escola possuía. Como faltava superfície, fazer trabalhos em grupo, em formato de roda, não era nem uma opção. “O aluno não ia para a pesquisa, não socializava. Tudo era centralizado na lousa e no conhecimento do professor”, relembra a diretora Lúcia. À primeira vista, isso pode não parecer um problema. Afinal, o formato entrega o modelo em que o único foco que o estudante tem está no professor.
“Mas será que ele está prestando atenção?”, questiona Célia. O modelo pode criar duas falsas sensações ao professor: 1) a de controle sobre a turma; 2) a de que o estudante nessa posição mantém o foco o tempo inteiro e está enxergando tudo. “Para que o único foco seja uma só pessoa, é preciso que ela esteja trazendo informações muito importantes, contextualizadas e interessantes para que a criança ou adolescente deixe de se distrair com outras coisas”, pondera a formadora. O “controle” também não desenvolve a autonomia dos estudantes, enquanto o trabalho individual costuma ser, em muitas instâncias, mais fácil do que ter que lidar com as diferenças e dificuldades de outros três ou cinco colegas.
Para substituir as carteiras universitárias, a escola manauara conseguiu mesas redondas com a Secretaria Municipal de Educação. Mas só as mesas. Diante da impossibilidade de usar as cadeiras daquele tipo, eles precisaram se adaptar. Um membro da comunidade se propôs a ajudar na mudança e cortou os tampos das mesas, para que as cadeiras continuassem sendo utilizadas pelas crianças.
Havia uma inquietação com o questionamento dos pais de estudantes na Amorim Lima sobre o desdobramento do projeto político-pedagógico (PPP) na prática. A comunidade era ativa, mas a escola tinha problemas de indisciplina, falta de professores e nem sempre as crianças tinham todas as aulas. “Além disso, os pais nos questionavam coisas como: a autonomia está no PPP. Mas como as crianças vão adquirindo essa autonomia?”, relembra Ana. No início, as questões iam aparecendo e a resposta era uma solução temporária. “Mas elas não resolviam os problemas de fato. Foi um momento importante, em que todos nós olhamos para nossa coerência”.
A oportunidade de mudança, veio com a troca de mobiliário da Universidade de São Paulo (USP); foi a oportunidade para que a escola saísse das carteiras individuais. “Eles nos doaram as mesas retangulares que eram usadas na universidade”, conta Ana. Juntando duas mesas era possível trabalhar com grupos de mais ou menos cinco alunos. As salas deixaram de ser exclusivas para uma única série. Alunos do 1º ano do Fundamental passaram a dividir o espaço com os do 2º e 3º ano. E grupos foram sendo criados por ciclos. Assim, saíram das salas comuns para espaços maiores – os salões –, com um número de professores que varia de acordo com o número de alunos no ambiente.
A transição de modelos
No decorrer da vida na escola, a formação de grupos costuma ser pontual. Sendo pontual, ela se torna uma espécie de evento: aquele momento em que estudantes ficarão livres das “amarras” das carteiras enfileiradas, poderão sentar com os colegas, conversar e obter ajuda para resolver as questões propostas pelo professor. Quando o que é pontual se torna o cotidiano, a primeira reação é agir como se aquela também fosse uma grande oportunidade a ser aproveitada, como se não houvesse amanhã. De acordo com a formadora Célia Senna, uma das formas de dar início à transformação é mudar com propósitos mais definidos. “O ideal é que se mude o arranjo da sala para favorecer as dinâmicas que o educador quer fazer”, explica. “É muito mais uma proposta para o educador do que para o estudante, porque o estudante topa”.
Para quem sempre foi tradicional, mas decidiu mudar, é preciso um pouco de paciência. A colaboração e compreensão da comunidade é essencial para que a transição não seja abalada pelo pessimismo sobre o modelo. Eliane da Motta Pinheiro já integrava o corpo docente quando a EM Waldir Garcia decidiu “deixar de ser tão tradicional”. A apreensão reinou durante algum tempo. “No primeiro ano da mudança, eu sofri. As crianças de seis anos já são inquietas por natureza e a conversa ficou mais evidente”, relata a professora do 1º ano do Fundamental. As reclamações foram generalizadas: as crianças não paravam mais sentadas, era muita falação, indisciplina e os professores estavam com dificuldade de dar aula.
Não eram apenas eles que queriam a volta do modelo tradicional. “Os pais me procuravam para falar que antes a escola era organizada, mas que agora estava uma bagunça. Teve até denúncia na secretaria de Educação”, relembra Lúcia. A diretora decidiu então embarcar juntamente com outros membros da equipe para São Paulo em uma imersão de escolas que já haviam adotado a prática com sucesso, como a Amorim Lima e o Projeto Âncora, em Cotia, no interior do estado.
A transição era realmente um processo que exigia desconstrução contínua, criação e aprimoramento. “Tudo na escola é pensado na organização de crianças uma atrás da outra”, define a diretora Ana. A escola manauara entendeu que seria preciso aprender a lidar com a maior liberdade, conviver com a autonomia, trabalhar em equipe e ser consciente da sua participação no coletivo. “Até então, a gente nunca tinha falado de empatia. A maioria nem sabia o que significava. Até a gente entender que tinha realmente que romper com aquele modelo dos nossos próprios tempos de escola, dos nossos pais… foi difícil. Ainda estamos aprendendo”, admite Lúcia. Muitos não se adaptaram e pediram remoção.
“As pessoas nos criticam porque estão
acostumados com a escola padrão. As carteiras
enfileiradas são o retrato de uma falsa harmonia.
As crianças só ouvem, mas não têm uma
aprendizagem significativa que possam levar para a vida”
LÚCIA CORTEZ DE BARROS
Na Amorim Lima, o apoio e sugestões da comunidade foram fundamentais para o estabelecimento do novo modelo. Afinal, as mudanças estavam surgindo como respostas aos problemas levantados pelos pais e a vontade de ser diferente. “Tínhamos um grupo de pais à frente das discussões que queria uma escola que fizesse mais sentido para os filhos”, diz Ana. Mas nem por isso o desafio foi menor. No início, eram encontros semanais com toda a comunidade escolar. “A gente não sabia nada e é uma experiência interessante e criativa que nos desafia a questionar as nossas verdades maiores”, considera a diretora. “Você pensa que está tudo estabelecido, mas o trabalho do educador não é só de reprodução. É também um espaço de criação”.
Para quem já nasceu livre dos formatos
No Projeto Âncora, uma associação filantrópica, não existem aulas e nem séries. A organização é por núcleos de aprendizagem: iniciação, desenvolvimento e aprofundamento – cada um com seu propósito. “Independentemente da idade, as crianças são organizadas pelo grau de autonomia. Isso não significa que uma criança de três anos vai ficar junto com uma de 12, porque os graus de autonomia são diferentes”, explica Edilene Morikawa, coordenadora pedagógica do projeto. Nesses núcleos, as crianças ganham autonomia para tomar decisões, desenvolver seus percursos de aprendizagem e construir senso de responsabilidade individual e coletivo.
Eles compartilham mesas coletivas, quadradas, redondas, mas também individuais. Mas não são elas que definem a mudança. “Para nós, a mesa é apenas mais uma ferramenta para desenvolver algo maior. Não é ela que determina se uma criança aprende mais ou menos dependendo de como se posiciona”, diz a coordenadora. No Âncora, todo o território escolar é realmente visto como espaço de aprendizagem: salas de aula, da coordenação, refeitório, horta e outros espaços abertos. A inspiração também veio da Ponte, em Portugal.
O impacto da mudança
“Com a mudança das carteiras, a gente começa a mudar outras coisas”, admite Lúcia. É preciso construir novas relações entre professores e alunos, mudar atitudes diárias, o modo de ensinar e de orquestrar a dinâmica da sala. Sem o foco na lousa e no professor, as três escolas optaram por trabalhar com roteiros de estudo e pesquisa. Qual a vantagem? O respeito ao ritmo de aprendizagem de cada aluno.
“A gente até usa a lousa ainda, mas não é o principal”, afirma a diretora da Waldir Garcia, em Manaus. Na avaliação da formadora Célia Senna, o objetivo da mudança da organização do espaço é justamente para que o modo tradicional de ensinar seja revisto. “Nada impede que, em um primeiro momento, as instruções estejam na lousa e se vá adaptando aos poucos. A possibilidade de um material impresso, como os roteiros, é uma opção interessante”.
Na Amorim Lima, foi uma doutoranda de Linguística da USP que trouxe a proposta de desenvolver roteiros. “A partir da vivência da nossa escola, ela inventou um jeito de trabalhar os livros didáticos. A partir de temas como memória ou cidades, trabalhamos interdisciplinarmente Ciência, História, Geografia, Língua Portuguesa”, conta Ana. Deu certo. A metodologia é usada até hoje por eles. O modo como o roteiro é trabalhado depende do nível de autonomia do estudante. “O processo de autonomia é uma construção. Uma criança de cinco anos precisa de um acompanhamento mais próximo do educador”, destaca Edilene, coordenadora do Âncora. No entanto, conforme avançam, elas podem contar mais com o auxílio do grupo e menor apoio do educador.
“Eu acho que a mudança não é mexer nas carteiras
ou melhorar a lousa. Vai muito além:
é repensar todo o projeto pedagógico
e a concepção de Educação”
EDILENE MORIKAWA
E como fica a avaliação?
“Não temos mais a prática de provas, só as avaliações externas”, relata a professora Eliane. A avaliação se dá por outras formas: o acompanhamento diário do desenvolvimento dos estudantes, as atividades feitas em sala, a interação com os colegas. “Anotamos tudo”, resume a professora. Quando se trata das avaliações externas, há um entendimento de que aquele momento é o conhecimento individual que está sendo avaliado.
As vantagens encontradas no novo formato
A primeira vantagem é a quebra do estigma que separa os bons alunos dos ruins: quem ocupa as primeiras carteiras são os alunos dedicados, os “CDFs”, enquanto o fundão fica por conta dos bagunceiros. “Nessa disposição, fica mais fácil perceber o que estão fazendo. Dificilmente alguém vai se debruçar na carteira para dormir em grupo”, diz Célia. Mas a lista de ganhos é longa, de acordo com as escolas: amplia a inclusão de crianças com deficiência e de alunos estrangeiros, melhora a convivência e colaboração tanto entre estudantes quanto professores, maior respeito ao tempo dos colegas e, consequentemente, a aprendizagem ganha muito.
Se elas voltariam ao modelo tradicional? “Não”, afirma a professora Eliane. Ana endossa: “Eu acho que a responsabilidade que eu sinto hoje é muito mais forte. Essa dimensão do nosso trabalho tomou outra proporção com as mudanças da Amorim Lima”. Para Lúcia, a resposta vem das crianças novas que chegam à escola. “Quando pergunto o que eles acham, a resposta é de que é a escola dos sonhos deles: onde eles conversam, são ouvidos e participam”, diz a diretora.
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