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A fantástica fábrica de poesia (ou como criar uma escola leitora)

O Ministério da Felicidade adverte: poesia faz bem pra molecada e as fotos não são montagens!

POR:
Priscila Arce
Foto: Getty Images

“Pessoal, hoje fui levar o Poesia contra Violência na EMEF Celia Regina Andery Braga que fica na Cidade Tiradentes, bairro da zona leste de São Paulo, e o que eu testemunhei vocês não vão acreditar: a escola é simplesmente maravilhosa! Que lugar da hora.

A coordenadora Priscila Arce e a professora Angela, essas duas guerreiras que amam educação - desde que os alunos venham junto -, assim como outros professores, prepararam um Sarau "O Ceregina" para os alunos e eu fui um dos convidados. Que coisa mais linda! Tinha poesia até nas paredes, no teto, saindo pelos olhos, pela boca, era a própria Fantástica fábrica de poesia. Uma manhã que mais parecia um sonho.

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Quando eu cheguei com o Jairo, ainda na rua, uma menina parou e perguntou se eu era o poeta. Disse que sim e ela abriu um sorriso tão grande e me acompanhou até a escola. Lá já foi me apresentando para os outros alunos, uma ótima anfitriã. Outro estudante me pediu para ler "Os Miseráveis".

A Yasmin, ainda na entrada, disse que amava minhas poesias. Recebi um abraço aqui, fiz uma foto ali. Pensei: 'Será que eles estão achando que sou o Paulo Coelho?' (rsrs) porque era tanto carinho, tanto respeito...

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A Angela conduziu um sarau onde a molecada, além de recitar poesia, tocou violão e flauta. Os professores Sergio e Jairo leram alguns poemas. As meninas da limpeza e da cozinha também participaram da leitura (Ah, outra coisa, que escola limpa, a cozinha estava um brinco). No final, elas ganharam livros. Da hora.

A professora/poeta Viviane Almeida leu o texto "Ele é aquele" em minha homenagem. Foi emocionante.

Falei um pouco sobre meu trabalho e respondi algumas perguntas. Se li poesia? Li, mas a fila era imensa, parece que todo mundo queria ler (Ô, glória!).

Enfim, uma manhã como poucas em minha em minha vida, sou grato pelo convite.

Eles penduraram livros no teto que nem a Chuva de livros da Cooperifa, e no final eles fizeram o Poesia no Ar. Sim, eles soltaram as poesias em balões de gás, para que a comunidade pudesse saber que ali estava rolando uma manhã poética na zona leste, periferia de São Paulo.

Do fundo do meu coração queria agradecer a todos e todas dessa escola MARAVILHOSA que me tratou como se eu fosse um poeta de verdade.
Quanto a Priscila e Angela, essas duas guerreiras (Dom Quixote e Sancho Pança) que amam o que fazem: educar. 

Um beijo no fundo do coração. Vocês são minha inspiração, minhas heroínas.”

EDUCADOR É AQUELE QUE CONFECCIONA ASAS. E VOA JUNTO.

Sergio Vaz

 

A minha compreensão de como promover uma escola leitora e escritora começou com esse sarau realizado em 2013, quando ainda era coordenadora pedagógica. O sarau teve a presença do poeta Sergio Vaz e para recebê-lo a escola transformou-se na Cooperifa - movimento cultural coordenado pelo poeta que existe há mais de 16 anos no Grajaú, na zona sul de São Paulo.  Em nossa região não estávamos acostumados a ver escritores pelas escolas, promover saraus e movimentar a equipe escolar e o bairro em torno da democratização da leitura. Tudo nasceu de um sonho de uma coordenadora pedagógica e uma professora de sala de leitura: leitoras apaixonadas que se fizeram uma pergunta séria e trabalharam por isso: como criar uma escola leitora? Tínhamos muitos livros na biblioteca da escola, mas não tínhamos muitos leitores e escritores. 

A resposta complexa nos levou durante quatro anos a promover a leitura literária em oportunidades infinitas e a desafiar as estatísticas que confirmavam que adultos e crianças liam até um livro por ano. Conseguimos transformar esses índices com alunos que estavam no terceiro ano, sendo o primeiro leitor da família a construir uma biblioteca em casa e outros que conseguiram melhorar a fluência leitora enquanto liam com muita dificuldade para um feirante na rua.

Este cenário não contrariava qualquer pesquisa realizada a esse respeito no Brasil. Entre essas pesquisas destaca-se a 4ª pesquisa Retratos da Leitura no Brasil realizada pelo Instituto Pró-livro em março de 2016, que busca melhorar os indicadores de leitura do brasileiro, mediante a orientação de políticas públicas do livro e da leitura, promovendo reflexão e estudos sobre os hábitos de leitura para identificar ações mais efetivas ao fomento do livro e da leitura.

Alunos da EMEF Sebastião Francisco O Negro em momento de leitura   Foto: Acervo pessoal

Alunos e funcionários da EMEF Celia Regina Andery Braga posam para fotos diante da árvore literária da escola  Foto: Acervo pessoal

Evento literário na EMEF Celia Regina Andery Braga, na zona leste de São Paulo  Foto: Acervo pessoal

Nesta pesquisa, o principal objetivo foi compreender o comportamento leitor e as condições de leitura da população brasileira. Muitos entrevistados alegam ter deixado de ler ou não lerem por falta de tempo ou por terem outras atividades, e durante a escolarização básica começam a ler por indicação de um professor. Entre os lugares escolhidos estão a leitura em casa ou na sala de aula e a televisão ainda impera entre as atividades preferidas.  Um dado que salta aos olhos na pesquisa é que a população de 70 anos ou mais não é formada por leitores.

Nessa edição da pesquisa foi inserida uma nova pergunta sobre quem havia influenciado a pessoa a gostar de leitura. Mães e professores aparecem no topo da lista.

Resgatei o texto do Sergio Vaz escrito após a visita a esta escola porque ele simboliza um caminho para as escolas que se pretendem leitoras e escritoras. Nós nos transformamos em fantásticas fábricas de poesia! Os livros devem sair das prateleiras, percorrer corredores, participar de rodas de leitura, saraus, leituras na praça, varais literários, feiras de troca, minis bienais, sempre com muita poesia no ar, leitura na feira – dando continuidade, regularidade, persistência a modelos. Não são campanhas passageiras, mas ações concretas.

Para promover situações de leitura e escrita precisamos de planejamento, clareza a respeito de sua função social e adultos leitores. Quando começamos a colocar tudo em prática não sabíamos que os jovens se tornariam mais leitores que os adultos e que a literatura incomodaria muita gente adulta. Se quero confeccionar asas e me recuso a voar junto não há verdadeira democratização da leitura literária. Não basta dizer que ler é bom e não planejar boas situações de leitura nas oportunidades que temos na escola. Partimos da premissa de que nosso apelo literário, nosso marketing poético, nossa propaganda tinha que de ser autêntica.

Em busca dessas transformações, Castrillón (2011) aponta que na Colômbia se debateram algumas proposições para melhorar a escola e a biblioteca. Em relação à escola, estamos falando da formação dos professores para que sejam também leitores e escritores e que tenhamos uma escola bem estruturada e equipada com materiais impressos e livros de qualidade – com a gestão de tempo na escola voltada à reflexão. Já a respeito da biblioteca pública, é importante construir espaços em função de projetos da comunidade, democratizando o acesso à cultura letrada, ter acesso à informação e conhecimentos tornando-se espaço de debate e intensa reflexão política.

Posso garantir que se os livros saírem das prateleiras e realmente forem para as mãos dos estudantes e adultos teremos altos efeitos colaterais: desejarão ser escritores, participarão de outros eventos que envolvem a leitura pela cidade, seu bairro terá uma FLICT ( 1ª Festa Literária da Cidade Tiradentes), caminharão com livros na mochila e embaixo do braço, vão adorar cheirar os livros novos e, o mais importante, o Brasil terá novos leitores. Lembro-me de uma criança do primeiro ano dizendo que estava lendo “ O Mundo de Sofia” e se orgulhar de carregá-lo em sua mochila e outro que havia pegado em nossa árvore literária “ Os irmãos Karamazov” e caminhava com ele embaixo do braço. Quando erámos visitados e as crianças começavam a procurar um canto para continuar suas leituras, quando crianças liam para outras crianças e quantas e quantas vezes não fui abordada por pequenos leitores me indicando uma história muito fascinante!

Hoje sou uma diretora de escola com essa enorme experiência na bagagem e não sei ao certo que frutos ficaram dessa empreitada literária. Continuo empreendendo mediações de leitura junto à equipe escolar. Durante o projeto conheci escritores que jamais imaginei que pudesse receber na minha escola para um bate papo, viajei para a Colômbia para conhecer bibliotecas-parques e ajudei a formar novos leitores!

A lembrança mais generosa que tenho na minha memória afetiva é o nascimento de uma potente escritora de literatura periférica, Débora Almeida de Souza. Neste sarau ela foi uma ouvinte meio tímida e que ao final ganhou um livro do Sergio Vaz. Atualmente, ela tem suas próprias publicações e o seu primeiro livro “Vozes da Periferia”, título que surgiu de um evento com o mesmo nome promovido na escola. Mãe de sete filhos, agente escolar ganhando um salário mínimo, caminhava mais de 30 minutos para chegar à escola. Tornou-se uma das maiores mediadoras de leitura do projeto em transformar a escola em leitora. Um dia aguardávamos o nosso horário de saída do trabalho e Débora me contou que alguém queria transformar sua vida em livro. Eu questionei por que ela mesma não assumia a autoria de sua própria história e que com todas aquelas memórias seria um livro que eu gostaria de ler! Ela me revelou que tinha uns caderninhos e que tudo que acontecia ela colocava ali e logo abriu-se uma ponte para a pergunta – você conhece Carolina Maria de Jesus? E o meu presente a Débora foi “Diário de Bitita”.

Neste mês da literatura não podemos deixar de lembrar também do nosso grande Antonio Candido e seu ensaio sobre o Direito à Literatura, no qual defende a literatura como um bem indispensável, uma necessidade fundamental como complemento da vida, um direito próprio do homem. A literatura desde menino e ao longo da vida vai enriquecendo a maneira de ver, a visão do mundo. A literatura é um bem mal distribuído na injusta sociedade brasileira. Devemos assegurar não apenas os bens materiais, mas os bens culturais e literários. Segundo Candido, “é uma brutalidade social fazer com que uma pessoa cresça e viva sem ter a capacidade de ler Machado de Assis ou Dostoiévski, é uma privação, uma mutilação de modo que para mim o direito a literatura desagua na justiça social, na literatura acessível a todos”.

Plantamos tantas sementes literárias que elas fizeram florescer uma árvore decorrente de um prêmio literário que nos deu aporte técnico e financeiro para projetá-la e liberar pela primeira vez os livros de uma sala com chaves e um responsável. Ela revelava nossas potencialidades e fraquezas na escola a respeito da literatura e do engajamento com a educação: alguns a amavam e outros a odiavam! Mas como o poeta Vaz havia nos ensinado: confeccione asas e voe junto! Precisamos de Dom Quixotes e Sanchos espalhados por aí! Como defendeu o Bartô – Bartolomeu Campos de Queirós – um “projeto literário é uma ação política”.

Encerro com o meu poema preferido da poeta Souza D. que das cenas do seu cotidiano “sangrava” literatura. Esta poesia foi escrita para registrar um dia no qual fomos surpreendidos com uma desapropriação de terreno que deixou nossas crianças em uma situação crítica:

Alvenaria

As crianças vão pra escola
Eu trabalho na reciclagem
Para não faltar alimento
Nunca me falta coragem
Minha casa é de alvenaria
Ela é toda decorada
Com as cores da alegria
Um dia hei de vencer
E formar minhas crianças
Acredito em um futuro
Ando cheia de esperança
Reintegração de posse?
O correio traz a mensagem
Moro aqui há 15 anos
Conversa mole, bobagem
Em uma mistura de loucuras
Bombas, trator, fogo e crianças
Derrubaram nossas casas
E nos roubaram a esperança!

 

Referências

Antonio Candido concede entrevista que defende o direito à literatura. In: https://www.youtube.com/watch?v=4cpNuVWQ44E. Acesso em 15 de abr. 2018.

CANDIDO, Antonio. Vários Escritos. 3ª ed revista e ampliada. São Paulo: Duas Cidades, 1995.

CASTRILLÓN. Silva. O Direito de Ler e Escrever. Editora Pulo do Gato.

SOUZA, Débora Almeida de. Vozes da Periferia (através do pano). Pará de Minas, MG. Virtual Books. 2016.

Sarauzim com o escritor Rodrigo Ciríaco. In: https://www.youtube.com/watch?v=ha54iBDa8EA. Acesso em: 15 abr. 2018.

 
Priscila Damasceno Arce é diretora da EMEF Sebastião Francisco O Negro, na zona leste de São Paulo-SP. Estudou em escola pública a vida toda e também foi professora e coordenadora pedagógica. É especialista em alfabetização e mestranda em formação de formadores pela PUC-SP.

Reintegração de posse que inspirou a poesia Alvenaria   Foto: Acervo pessoal

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