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Quando as salas de aula viram abrigo

Escolas de Nova Friburgo, no Rio de Janeiro, ensinam que a parceria com as famílias é essencial para acolher desabrigados nas tragédias naturais

POR:
Noêmia Lopes

Na noite de 11 de janeiro, uma forte chuva atingiu a região serrana do Rio de Janeiro. A quantidade de água que caiu em pouco mais de 24 horas superou o esperado para o mês inteiro. O resultado todo mundo soube pelos noticiários: mais de 900 mortos e milhares de desabrigados - a oitava pior catástrofe mundial em deslizamentos.

Quando a tragédia aconteceu, faltava pouco menos de um mês para as aulas começarem na rede municipal de Teresópolis, a 99 quilômetros do Rio de Janeiro. Os professores e gestores da EM Monsenhor Mário do Carmo Benassi estavam em recesso. Eles fecharam o ano de 2010 com uma festa comunitária e voltariam à escola a partir de 24 de janeiro para fazer o planejamento de 2011. Contudo, os efeitos da chuva atrapalharam os planos. Por quase dois meses, as salas de aula e o pátio viraram abrigos e depósitos de mantimentos, roupas e produtos de higiene.

Todo verão, essa história se repete em diversas cidades brasileiras. Desamparadas, as famílias se refugiam em um local que consideram seguro. Esse lugar, na maioria das vezes, é a escola do bairro. "Cabe ao gestor receber e auxiliar os moradores do entorno em todas as situações, inclusive as de emergência", diz Maura Barbosa, consultora de GESTÃO ESCOLAR. Como defende a pedagoga equatoriana Rosa María Torres: "as comunidades não foram criadas para servir a escola, é a escola que deve participar na comunidade, vincular-se a ela e se colocar a seu serviço".

Os representantes federais, estaduais e municipais da Defesa Civil entendem o uso do espaço escolar como uma necessidade e um direito. "Nossas cidades contam com poucos espaços urbanos de uso comunitário com capacidade para receber um grande número de pessoas. Em geral, há as escolas e algum ginásio esportivo. O amparo legal para utilizá-los está na própria Constituição Federal. Ela prevê o uso até de propriedades particulares em benefício da população em risco. Logicamente que, com ainda mais direito, podem ser ocupados os patrimônios públicos", explica o tenente-coronel Roberto Robadey, coordenador da Defesa Civil de Nova Friburgo.

O problema é que não há gestor que receba, juntamente com o cargo, um manual que a responda perguntas como: de que forma acomodo as famílias? Como controlo quem entra e sai da escola? De que jeito distribuo e armazeno os donativos? Como garanto que os espaços e materiais não sejam danificados? E de que maneira faço tudo isso, planejando retomar a rotina das aulas? O diretor geralmente só descobre essas respostas no dia a dia. Porém um bom começo para estar preparado a enfrentar crises é apostar no estreitamento da relação com o entorno.

Quando a escola sofre

A equipe escolar se mobilizou para limpar os ambientes e garantir a volta às aulas. Arquivo da escola e Lucas Landau
RECUPERAÇÃO URGENTE A equipe
escolar se mobilizou para limpar os
ambientes e garantir a volta às aulas

O local que não vira abrigo durante emergências muitas vezes foi, ele mesmo, vítima da catástrofe, como ocorreu com o CE Doutor Galdino do Valle Filho, em Nova Friburgo. Com a queda de barreiras e o aumento do nível do rio que passa à frente dele, uma grossa camada de água e lama invadiu o andar térreo do edifício, danificando livros, materiais de escritório, aparelhos eletrônicos e documentos. O estrago foi tanto que a diretora, Anna de Fátima das Neves Ferreira, só conseguiu entrar na escola dois dias após as chuvas amainarem. Ao iniciar a limpeza, com três voluntários, ela notou rachaduras em várias paredes. A primeira medida foi chamar a Defesa Civil. Cinco dias depois da tragédia, novo choque: o prédio foi condenado, e parte dele, interditada. A rigor, as turmas teriam de ser remanejadas para quatro outras unidades. "Sabíamos que isso significaria evasão de muitos alunos e interrupção do nosso trabalho de gestão, já que seria impraticável administrar quatro locais diferentes. Pedimos uma reavaliação e ficou constatado que a divisão não seria necessária. Todos poderiam voltar à escola desde que os espaços comprometidos continuassem isolados", conta Anna. A Secretaria Estadual de Educação disponibilizou 9 mil reais, via Associação de Pais e Mestres (APM), para reparos, pinturas e aquisição de materiais escolares e aparelhos danificados. Em 21 de fevereiro, 40 dias depois da tragédia, a parte liberada da escola recebeu os estudantes limpa e organizada. Mas as rachaduras continuam sendo monitoradas e ainda não se sabe se haverá demolição, reforma ou nova paralisação das aulas.

 Bom relacionamento é fundamental na superação de tragédias

Colagem de Maurício Palnel sobre fotos de SOS global/relatório de campo e Lucas Landau
"Algumas salas viraram almoxarifado.
Outras, dormitórios. Depois da desocupação,
pedimos ao órgão de obras do estado
que pintasse os espaços para recebermos
bem os estudantes."
Lucimar Tuller Siqueira, diretora da
EM Monsenhor Mário do Carmo Benassi,
em Teresópolis, que abrigou 70 pessoas
por quase dois meses no início do ano.

Foi essa proximidade que ajudou a diretora da EM Monsenhor Mário do Carmo Benassi, Lucimar Tuller Siqueira, a abrigar 70 pessoas em janeiro. "Além dos conteúdos pedagógicos que oferecemos aos alunos, entendemos que é nosso papel auxiliar a comunidade em suas necessidades mais urgentes", afirma ela.

A escola existe há 50 anos e, desde então, o relacionamento com os vizinhos é exemplar. Foi dentro dela que surgiram grupos voluntários para erguer muitas das primeiras residências do local e ajudar a combater a violência doméstica - problema sério na região. A Monsenhor é tão aberta à comunidade que sua quadra é usada para aniversários, casamentos e batizados. E a secretaria escolar funciona como um tira-dúvidas da população - formada por meeiros que plantam alimentos como brócolis, tomate e alface. "Nosso pátio sempre foi o porto seguro da comunidade. Agora, não foi diferente", diz Lucimar.

Em 11 de janeiro, a funcionária de serviços gerais Angela Maria Cunha da Silva, que mora perto e tem as chaves do prédio, abriu os portões para os desabrigados. Nos dias seguintes, chegaram a vice-diretora, os professores e os demais funcionários. A diretora só soube que a escola virara abrigo cinco dias depois - ela estava isolada onde mora, em Nova Friburgo, próximo a Teresópolis, com a casa cheia de água e nenhum tipo de comunicação. Quando chegou, encontrou um cenário relativamente tranquilo. "Todos estavam instalados e organizados. Como as famílias sempre estiveram dentro da escola, souberam quais ambientes ocupar, tiveram cuidado com os locais onde ficam os documentos e zelaram pelos aparelhos e materiais das crianças. Às vezes, alguns pais desanimavam, deprimidos. Então, pedíamos ajuda para dobrar roupas e varrer salas, por exemplo. De pronto, eles colaboravam", conta Lucimar. A comunidade parceira tem consciência da importância de conservar o ambiente escolar e, assim, mais condições de contribuir com a gestão do abrigo. Isso facilitou a administração da escola e o trabalho de toda a equipe, que pode se dedicar à preparação para o retorno às aulas e ao planejamento das atividades pedagógicas.

Esforço de equipe para providenciar o atendimento emergencial

Colagem de Maurício Palnel sobre fotos de Carla Noemia Marins Soares e Lucas Landau
"No pátio, em frente à secretaria, organizamos
a distribuição de remédios e outros donativos.
Depois da tragédia, incentivamos os alunos
a expressar o que sentiram por meio de
desenhos e conversas."
Carla Aparecida Campos da Silva, diretora
da EM Lafayette Bravo Filho, em Nova Friburgo,
no Rio de Janeiro, que recebeu 124 moradores
durante cerca de oito semanas depois
das chuvas de verão.

Já a EM Lafayette Bravo Filho, em Nova Friburgo - uma das 30 escolas municipais da cidade a servir como habitação provisória depois das chuvas de janeiro -, teve mais dificuldades durante as oito semanas em que 124 pessoas lá moraram. Em parte, pela gravidade da situação. Em parte, porque a aproximação entre a escola e as famílias, iniciada na gestão atual com ações como o incentivo à participação nos eventos culturais, ainda tem muito a se desenvolver.

Na noite em que a região foi devastada, as famílias do bairro Floresta correram para a escola. O mecânico aposentado Isaias de Souza, vizinho e voluntário para serviços gerais na Lafayette há 38 anos, viu a confusão e telefonou para a diretora, Carla Aparecida Campos da Silva. Ela conta que, quando chegou lá, encontrou um cenário de guerra: "Mais de 100 pessoas já tinham se instalado nas classes. Àquela altura, não havia luz, água, comida ou colchões. Não havia o que fazer até o amanhecer".

A gestora teve de assumir múltiplos papéis para gerenciar o abrigo até que tudo voltasse ao normal. "Em uma situação como essa, o diretor tem o desafio de equilibrar suas atribuições originais com as responsabilidades de um agente social, um administrador e até um terapeuta", afirma Carla.

A diretora, duas vices e o corpo docente se uniram para garantir as condições básicas de manutenção do abrigo. Carla usou sua experiência com a organização de documentos para elaborar um censo, registrando o nome das pessoas, a família à qual cada um pertence, a situação da residência e a idade das crianças. Esses dados ajudaram na distribuição das doações, que não paravam de chegar. Outra área que contou com a expertise de gestores e funcionários foi a da alimentação. Assim como é feito cotidianamente com a merenda escolar, a validade de todos os produtos doados era checada e um rodízio na cozinha garantia o preparo das dezenas de refeições diárias. Enquanto a equipe cuidava da parte operacional, voluntários externos ofereciam oficinas aos desabrigados.

A parceria consistente com a comunidade também pode se estender a outras entidades da sociedade. É o que sempre ajuda os gestores do CE Rocha Pombo, em Morretes, a 72 quilômetros de Curitiba. As chuvas de verão fazem o nível do rio que corta a cidade subir anualmente e, quando as águas entram nas casas, as famílias recorrem à escola. Por isso, há uma articulação permanente com a Defesa Civil, que promove a ocupação e toda a logística do abrigo.

Neste ano, a Rocha Pombo recebeu 680 pessoas, que ali ficaram por quase uma semana. A diretora, Vanice Regina de Oliveira Charello, relata o papel dos gestores: "Infelizmente, as famílias do nosso bairro estão habituadas a ter de deixar sua casa e elas sabem que podem contar conosco. A nós cabe abrir as portas, ajudar nos atendimentos e disponibilizar espaços e materiais". Nesse aspecto, a experiência pessoal e o apoio dos parceiros ajudaram Vanice a fazer bom uso dos ambientes. A sala da supervisão virou um ponto de apoio das equipes que se ocuparam da segurança e do auxílio à população. O pátio acomodou galões de água. Uma das salas de aula ficou com os bombeiros. As demais classes estocaram donativos, além de servirem como dormitórios até que as famílias pudessem voltar à sua casa, e a escola, às aulas.

Depois da tragédia, a preparação para o retorno à rotina escolar

Colagem de Maurício Palnel sobre fotos de Marcelo Almeida
"Na quadra, estocamos colchões, cobertores
e outros produtos doados às famílias
abrigadas na escola. Mas logo depois
desocupamos e limpamos todos os ambientes
para receber os alunos na volta às aulas."

Vanice Regina de Oliveira Charello, diretora
do CE Rocha Pombo, em Morretes, no Paraná,
que abrigou 680 pessoas durante uma semana.

Toda escola usada como abrigo tem o desafio de gerenciá-lo e, ao mesmo tempo, pensar na volta às atividades regulares. Isso significa auxiliar as famílias que perderam a residência a encontrar um local seguro para ficar, encaminhar os donativos excedentes aos órgãos assistenciais do município, verificar com a Secretaria de Educação como será a reposição dos dias letivos e a recuperação do conteúdo atrasado, acompanhar a movimentação escolar de quem deixou a escola ou está chegando a ela e, por vezes, buscar apoio psicológico para alunos e funcionários.

Em geral, o primeiro passo é fazer uma boa limpeza e os reparos necessários na infraestrutura (leia o quadro da primeira página). A equipe da EM Lafayette Bravo Filho, em Nova Friburgo, arregaçou as mangas para limpar os ambientes. Além disso, a diretora acompanhou pessoalmente a realocação das últimas 33 pessoas que deixaram o abrigo, o que ocorreu na semana antes do início das aulas, em 14 de março. O dia da volta às atividades teve muitas carteiras vazias. É que, depois de tragédias naturais, é comum haver uma considerável movimentação por causa de mudanças de bairro e cidade. Para colaborar com o processo, o diretor deve comunicar à Secretaria de Educação as suspeitas de cancelamento de matrícula.

O planejamento das primeiras aulas também requer atenção. Na Lafayette, o objetivo foi ajudar os alunos a expressar o que sentiram com a tragédia, com rodas de conversas e a produção de desenhos sobre o que se espera daqui para a frente. Estratégia semelhante foi usada na EM Monsenhor Mário do Carmo Benassi, em Teresópolis, onde o desafio foi oferecer ajuda psicológica à comunidade. A equipe inteira participou de palestras com psicólogas para trabalhar a dor pelas mortes de seis alunos e, depois, poder auxiliar as turmas a fazer o mesmo.

Por enquanto, as crianças e os jovens que moraram nesses abrigos ainda estão redescobrindo a escola como um lugar de aprendizagem. Para os gestores, a rotina tem de voltar rapidamente ao normal, retomando o planejamento do ponto em que foi interrompido. Sem esquecer de levar em consideração as experiências pelas quais todos passaram.

Quer saber mais?

CONTATOS
CE Doutor Galdino do Valle Filho, tel. (22) 2533-2036
CE Rocha Pombo, tel. (41) 3462-2112
Coordenadoria Municipal de Defesa Civil de Nova Friburgo, tel. (22) 2525-9157
EM Lafayette Bravo Filho, tel. (22) 2520-5321
EM Monsenhor Mário do Carmo Benassi, tel. (21) 2643-7481

BIBLIOGRAFIA
Educação e Imprensa
, Rosa María Torres, 120 págs., Ed. Cortez, www.lojacortezeditora.com.br, tel. (11) 3611-9616, 12 reais

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