Ir ao conteúdo principal Ir ao menu Principal Ir ao menu de Guias
Notícias
5 4 3 2 1

Como integrar alunos brasileiros e estrangeiros?

Conversar com os pais foi apenas o começo; a escola também adotou a imigração como parte do currículo

POR:
Cláudio Neto
Alunos de várias nacionalidade juntos e sorrindo em uma sala de aula
Foto: Getty Images

Há cerca de sete anos eu lidava com a angústia de não saber o que fazer para tornar mais significativa a aprendizagem dos alunos imigrantes na escola onde eu sou diretor. Eu tinha a noção de que essa ausência de significado dizia respeito também aos alunos não estrangeiros, porque as trocas interculturais dependem da boa convivência entre todos os alunos. Se não havia integração não seria possível haver experiências pedagógicas significativas, capazes de promover a participação efetiva dos recém-chegados e de desenvolver o respeito e o espírito de colaboração entre os estudantes nascidos no Brasil. Naquele momento era evidente a falta de entrosamento entre os outsiders e os estabelecidos, portanto, os saberes mais extraordinários que essas pessoas detinham não se constituíam em enredo para a aprendizagem de todos.

LEIA MAIS   O mundo em uma escola

O que havia era a xenofobia e a segregação. A falta de integração não era só um problema entre os brasileiros e os estrangeiros, mas entre os próprios estrangeiros também. As pessoas de cada nacionalidade não se relacionavam entre si: bolivianos, paraguaios, argentinos, uruguaios. A pergunta que eu me fazia era: como acabar com o distanciamento entre os alunos, sobretudo entre os alunos brasileiros e os estrangeiros? Encontrar a resposta para esta pergunta passou a ser uma obsessão e o caminho escolhido foi o diálogo com os pais. Em uma dessas conversas com os pais dos alunos, no final do ano de 2011, o enigma começou a ser desvendado, sendo completamente solucionado em dois estágios diferentes, mas que se revelaram complementares. 

LEIA MAIS   Escola que prega inclusão vence Prêmio Faz a Diferença    

Estágio 1: um fórum de discussão permanente com alguns alunos

Um dos pais presentes na reunião me disse: – Diretor, o Sr. pediu a nossa ajuda, nós estamos aqui pensando em como promover o respeito e a integração entre os alunos, nós ficamos felizes em ajudar, mas eu acho que a melhor maneira de resolver esse problema é fazer com que esses alunos conversem também. Mas não uma conversa de uma aula. Deve ser uma conversa que pode demorar meses até que a tão sonhada integração aconteça. O pai tinha razão e depois me pareceu óbvio que só alguém de fora da rotina pedagógica podia imaginar uma solução que fugia do padrão de organização da escola, ou seja, pensar em trabalhar com um grupo específico de alunos, reunidos a partir de problemas comuns e sem tempo definido para atingir os objetivos que se desejava alcançar. A partir dessa ideia, em fevereiro de 2012, foi criado o projeto intitulado Escola Apropriada: educação, cidadania e direitos humanos, no qual os alunos estrangeiros passaram a se reunir quinzenalmente com a gestão da escola, durante seis meses, para apresentar as suas demandas e depois desse período cada aluno estrangeiro podia levar um amigo não estrangeiro para compor o grupo. Resta dizer que esse grupo existe desde aquela época e vem se reunindo regularmente duas vezes por mês, durante duas horas-aula.    

Estágio 2: a inserção do tema da imigração no currículo da escola

Em 2014 nós já tínhamos consciência do sucesso absoluto desse projeto, uma vez que a segregação e a violência não eram mais um problema na escola. Os alunos brasileiros e estrangeiros conviviam harmonicamente e não havia mais o distanciamento de antes. A partir de então, a nossa ambição passou a ser a inclusão de conteúdos desses países no currículo da escola. Em vista disso, a disciplina de Língua Portuguesa ao trabalhar literatura passou a considerar autores das nacionalidades presentes na escola. Na disciplina de Artes passou-se a estudar também a arte e os artistas desses países e assim por diante. E para fazer isso de maneira consistente nós fomos até a Bolívia, país de maior representação estrangeira na escola. Oito educadores, oito alunos e uma pesquisadora da USP participaram desta expedição. Foi uma viagem memorável de cinco dias, com status de viagem oficial, sob mediação das Secretarias de Relações Internacionais de São Paulo e de La Paz. Na capital boliviana nós visitamos museus, escolas, lugares, monumentos e participamos de uma reunião na Diretoria de Educação de La Paz. Além disso, nós visitamos o sítio arqueológico de Tiwanaku e fomos ao Lago Titicaca na divisa com o Peru. 

A imigração como eixo narrativo do Projeto Pedagógico

Promovido o diálogo entre brasileiros e estrangeiros ficou fácil entender a necessidade de transformar a questão da imigração em um eixo narrativo do projeto da escola, pois a diversidade cultural é muito importante para o desenvolvimento das pessoas. Logo, a riqueza do ato educativo passava pela criação de laços de solidariedade entre os alunos, para se chegar à compreensão de que não se trata de um problema individual. Não é um problema de uma pessoa ou de um país isoladamente. O contexto do atual ciclo migratório remete à compreensão de uma cidadania global, onde o imigrante deve ser visto como um igual e não como uma ameaça. O drama dos imigrantes ou refugiados guarda as devidas proporções às opressões dos de cá. Afinal, somos todos migrantes e ter vindo de mais perto e daqui de dentro do país mesmo é o que nos distingue. No entanto, a língua é o que nos separa e a perda é o que nos une, seja a perda do lugar de origem ou a perda da dignidade humana.       

Desafios ao currículo: o global e o local juntos e misturados

Em tempo de discussão da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), com o objetivo de criar uma normativa obrigatória para todo o sistema nacional de educação, surgem indagações que inflamam as discussões, as quais vão do questionamento da necessidade de um currículo totalizante à crítica do ímpeto centralizador de um país que tem a diversidade como marca fundamental. A despeito disso, lidar com as dimensões global e local do currículo sempre foi um dilema no cotidiano das escolas brasileiras, salvo raras exceções. Articular os conteúdos curriculares mais gerais definidos pelas redes de ensino com as questões mais locais da escola exige uma inter-relação entre esses parâmetros e os projetos das unidades educacionais. Nesse caso, a imigração que era um problema isolado de poucas escolas de grandes centros urbanos passou a fazer parte da realidade de muitas unidades educacionais de vários lugares do país, especialmente depois da implementação do programa de interiorização de imigrantes no Brasil.

O diretor Cláudio (à direita) com o coordenador Carlos, Sharazad, Mohamed e Mayas na entrada da Dom Henrique
O diretor Cláudio (à direita) com o coordenador Carlos, Sharazad, Mohamed e Mayas na entrada da Dom Henrique Foto: Mariana Pekin/Arquivo  

Soma-se a isso o questionamento feito pela pesquisadora Vera Maria Candau sobre o caráter monocultural e etnocêntrico que, explícita ou implicitamente, estão presentes na escola e nos currículos escolares. Uma observação também muito pertinente diz respeito aos critérios utilizados para selecionar e justificar os conteúdos escolares, que, em grande medida, são responsáveis pela pretensa “universalidade” dos conhecimentos, valores e práticas que configuram as ações educativas. Se considerarmos que, em linhas gerais, o currículo escolar abrange as experiências de aprendizagens das instituições escolares, torna-se incontestável a necessidade de levar em conta o contexto local, de modo que cabe às ações pedagógicas incidir sobre o território e sobre os problemas que nele ocorrem.

Se “para educar uma criança é necessário uma aldeia”, a escola não pode se isolar do seu contexto mais imediato, porque, às vezes, esse contexto guarda estreita relação com o contexto social mais amplo e a imigração é um exemplo disso. Não que a imigração seja uma novidade nos acontecimentos da humanidade, mas porque ela adquire novos contornos impostos por conflitos bélicos e pela política macroeconômica que afeta mais profundamente os países mais pobres. É precisamente aqui que residem os fundamentos de uma noção de cidadania global. A UNESCO já vem discutindo formas de encarar o desafio de como fazer chegar a cidadania global no currículo das escolas, a exemplo do seminário realizado na Fundação Santillana, em setembro de 2017, em São Paulo, do qual participei.

A ideia de uma cidadania global emerge da necessidade de afirmação da inviolabilidade da dignidade humana com base em direitos fundamentais, que vão das garantias sociais como o acesso ao sistema de saúde, educação, trabalho e lazer, àquela mais elementar como a sobrevivência. A escola e o seu currículo passam a ser o lugar de discussão e difusão desse ideal, especialmente porque a cidadania global pode chegar no currículo das escolas a partir da perspectiva da educação ao longo da vida, fundada na igualdade de oportunidades, visando a construção de uma sociedade mais justa e democrática.

Bom problema

É importante destacar que o reconhecimento que a nossa escola alcançou pelo trabalho realizado com os alunos imigrantes não foi fruto de estudo que mudou nossa maneira de pensar e agir diante do problema da imigração. Ao contrário, foi exatamente o fato de encarar a imigração como um bom problema que nos deu a condição de estudar e compreender esse fenômeno tão comum e ao mesmo tempo tão atual no Brasil e no mundo. Transformar a imigração em um eixo narrativo fundamental do nosso currículo foi o que iluminou a grande transformação da nossa prática pedagógica. Prática esta que partiu do diálogo com a comunidade escolar. Nós entendemos que as mães e pais dos nossos alunos compreendem os problemas do nosso tempo e devem ser ouvidos na hora de pensar e definir as ações do currículo. De modo geral, é possível afirmar a necessidade de atentar para uma participação mais efetiva da comunidade na escola. Isto ainda deve ser corrigido e como já dizia o saudoso José Saramago: “Se podes olhar, vê, se podes ver, repara”.  

Claudio Marques da Silva Neto é diretor da EMEF Infante Dom Henrique, em São Paulo. Tem experiência em direitos humanos, formação docente, cultura escolar, indisciplina, violência e gênero. É mestre e doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).

 

 

 

Aprofunde sua leitura