EJA: como lidar com os conflitos geracionais?
A partir de formações, o coordenador pode auxiliar na criação de condições para que as diferenças não sejam vistas como obstáculos
POR: Ewerton de SouzaÉ comum associar a imagem de uma sala de Educação de Jovens e Adultos (EJA) com a de homens e mulheres adultos. Geralmente adultos trabalhadores, que não puderam frequentar a escola na idade adequada – seja porque tiveram que trabalhar muito cedo para ajudar no sustento da família, seja porque simplesmente a escola inexistia onde moravam. No entanto, a realidade das salas de EJA confrontam esse imaginário. Um fenômeno cada vez mais comum é a presença de jovens entre 15 e 17 anos, no caso das turmas de EJA do Ensino Fundamental, ou a partir de 18 anos, no caso do Ensino Médio.
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Esse aumento de adolescentes e jovens adultos nas salas da EJA demonstra dois problemas: o primeiro é que o acesso à escola ainda não foi completamente resolvido. Em segundo, mais grave ainda, pode indicar que algo está errado com a escola regular, uma vez que muitos deles, embora tenham acessado a escola, não conseguiram permanecer nela ou repetiram tantas vezes – por baixo desempenho, evasão ou frequência irregular – que acabaram alcançando uma idade inadequada às séries em que estão matriculados.
Casos de quem está na EJA
Como gestor de uma escola exclusiva para jovens e adultos na cidade de São Paulo, tenho vivenciado esta realidade bem de perto. A demanda de jovens para as séries finais do Ensino Fundamental cresce cada vez mais. Mas também não são raros os casos de jovens que nunca frequentaram a escola ou que, tendo lhe frequentado, não conseguiram se alfabetizar. Muitas vezes, as situações de vulnerabilidade são extremas. Esses dias, recebi um jovem de 20 anos, nascido em São Paulo, que não sabia ler e escrever e não possuía carteira de identidade ou CPF.
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O mais frequente, no entanto, são jovens que foram “expulsos” das escolas regulares. Os motivos são variados: problemas de comportamento, dificuldades de aprendizagem, vulnerabilidades sociais que impedem a frequência ou um desempenho razoável (falta de condições de moradia, violência doméstica, gravidez precoce...).
Para superar o conflito intergeracional
Fato é que estes jovens compõem as turmas com outros educandos – adultos, muitas vezes com idade para serem seus pais ou avós. E, nesta heterogeneidade etária, é comum vivenciarmos o conflito intergeracional. Isso porque, por pertencerem a gerações diferentes, apresentam valores díspares e formas de enxergar a escola bem diversas. Enquanto o adulto geralmente anseia por uma aula na qual o professor assume um papel central e inquestionável, o jovem tende a relacionar-se de forma mais horizontal, apresentando-se questionador dos valores da escola e das gerações que lhe antecederam. O resultado é um conflito muitas vezes difícil de se administrar.
Não há receitas, mas uma palavra-chave que pode orientar educadores à resolução desses conflitos: diálogo. O desafio é promover a conversa entre jovens e adultos de modo que se possa criar um espaço para a geração de empatia entre esses grupos. Realizar atividades que provoquem a socialização das trajetórias dos educandos pode ajudar a gerar afinidades, e especialmente solidariedade. É importante que os adultos compreendam que aquele jovem presente em sua turma não é um problema exclusivo da escola ou do professor, mas merece a acolhida de todos os demais educandos. Da mesma forma, tem funcionado muito bem engajar aqueles jovens com menos dificuldades no auxílio a outros educandos adultos.
No entanto, há um problema que precisa ser resolvido antes dessa ação do professor em sala de aula, e é justamente a imagem que o professor carrega da modalidade de Educação de Jovens e Adultos. Tenho visto, ao longo da minha carreira, chegarem muitos professores à EJA com a expectativa de encontrar aquela sala cheia de cabecinhas brancas que querem se alfabetizar. Alunos dóceis, que jamais questionam a metodologia do professor numa sala ausente de qualquer conflito. Qual a surpresa quando, ao entrar na turma, o professor se depara com uma sala dividida pelos conflitos de que falamos...
O papel do coordenador
Nesse sentido, é urgente a formação dos educadores para lidar com essas turmas da EJA. Essa é uma tarefa para o coordenador pedagógico justamente porque é atribuição formativa. E, talvez, o caminho para esta formação passe exatamente pela compreensão profunda de seus sujeitos. Certa vez, organizei uma formação para minha equipe docente na qual exploramos a fundo quem são esses educandos da EJA, especialmente os jovens. Essa formação partiu de um ponto crucial: todos fomos jovens e, quando o éramos, também não nos conformávamos com a geração anterior e muitas vezes criticávamos a forma como a escola – e a sociedade – funcionava.
No nosso caso, começamos por resgatar a historicidade da juventude, a fim de mostrar como o conceito de jovem muda ao longo da história. Realizamos isso por meio de dinâmicas como uma “viagem no tempo” na qual passávamos pela cultura juvenil de várias épocas. A fim de aprofundar a experiência, noutra ocasião, convidamos os professores a compor painéis com colagens de imagens e palavras que representavam a sua juventude, socializando o registro com outros colegas.
Essas atividades, como já se disse, ajudam o professor a se recordar que também foi jovem e que, em sua época, os adultos também necessitaram ser pacientes e contribuir em sua formação como cidadão. Entretanto, é igualmente fundamental propor ao grupo docente atividades formativas nas quais eles possam tomar contato com as características, valores e linguagens da juventude atual, a fim de que possam desenvolver estratégias de aula que dialoguem com este público.
Uma vez que o professor tenha se aberto à acolhida destes jovens nas turmas de EJA, ficará muito mais fácil que ele seja um estimulador dos demais adultos para receberem este público em suas turmas.
Não há uma fórmula para lidar com o conflito intergeracional em sala de aula, assim como não há fórmula para nenhuma outra forma de conflito. O importante é compreender que a essência de qualquer conflito é a divergência de valores, de pensamentos, de formas de enxergar a vida. Na ausência do respeito pelo outro, por sua história e por sua identidade, os conflitos tendem a se transformar em confrontos. Nosso papel como educadores na administração dessas relações conflituosas das turmas é criar condições para que as diferenças não sejam vistas como obstáculos para a realização dos objetivos de cada sujeito, mas sim que sejam acolhidas a partir da compreensão de que a diversidade não é algo ruim, mas uma oportunidade de tornar a minha experiência como ser humano muito mais rica a partir da experiência do outro que comigo compartilha as aprendizagens de uma sala de aula.
Um abraço,
Ewerton
Ewerton Fernandes de Souza é coordenador geral no CIEJA Clóvis Caitano Miquelazzo, escola da prefeitura de São Paulo que lida exclusivamente com Educação de Jovens e Adultos, especialmente na faixa etária dos 15 aos 18 anos. Foi um dos 50 finalistas do Prêmio Educador Nota 10 de 2017
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