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Escuta ativa e gestão democrática: jogar bola sozinho não ganha campeonato

Uma gestão centralizadora pode parecer mais simples do que transformar a participação da comunidade em uma gestão democrática. José Marcos Couto Júnior aborda os benefícios e potencialidades gerados pela escuta ativa de gestores

POR:
José Marcos Couto Júnior
Crédito: Getty Images

Entre 1643 e 1715, o povo francês viveu por impressionantes 72 anos sob o reinado de Luís XIV. Ele é, até os dias de hoje, o monarca que ficou por mais tempo no trono – para constar, a Rainha Elizabeth II vem mostrando bastante disposição e saúde para bater esse recorde, na Inglaterra. Luís XIV ficou na História como aquele que melhor se adequa ao conceito de Rei Absolutista. A sua frase mais famosa, replicada exaustivamente em provas de oitavo ano, é a célebre "l'État c'est moi": "o Estado sou eu". Embora historiadores divirjam sobre a origem e veracidade desta sentença, ela nos dá a dimensão da centralização de poder em seu reinado.

Impérios centralizados como o do Rei Absolutista acontecem em diferentes esferas de gestão. Às vezes, elas até se inspiram, com orgulho, em Luís XIV. Há alguns anos, eu estava em um Centro de Estudos quando a direção foi questionada sobre a necessidade de consulta ao Conselho Escola Comunidade (CEC). Foi quando surgiu a pérola: "consultar o CEC? Eu não preciso do CEC. O CEC sou eu". Não preciso dizer que a frase "le CEC c'est moi" virou piada interna entre os professores de História, não é?

O aspecto centralizador da diretora limitava-se à esfera administrativa. Pedagogicamente, sempre houve liberdade na escola. Por sorte, as atitudes deste gênero foram mais exceção do que regra ao longo da minha trajetória profissional. E são as boas práticas que presenciei e aprendi no contato com os profissionais que me chefiaram nestes dez anos de rede que espelham o meu trabalho diário.

Ser gestor tem muito a ver com compreender as condições onde se está inserido através de uma escuta ativa e apurada. Afinal, a escola não é só minha. Gerir seria, sobretudo, ter a perspicácia de formar redes de suporte intersetoriais em diversos níveis, construindo pontes, descentralizando a gestão.

Jogar bola sozinho não ganha campeonato fora do mundo virtual
Em meados da década de 90, eu passava horas na frente da televisão jogando vídeo game. A maior parte deste tempo optava por jogos de futebol. O meu game predileto era o Winning Eleven, que na época chegava a rivalizar com o famoso FIFA Soccer. Diferentemente dos modelos atuais, os jogos da minha infância não primavam pela fidelidade nas características dos atletas retratados. Na maioria das vezes, era impossível entender os critérios elencados pelos projetistas para atribuir habilidade, ou a falta dela, a determinados jogadores.

Na versão de 1996 do game, o Roberto Carlos, lateral esquerdo da seleção, corria mais que qualquer jogador. Era capaz de fazer gols do meio de campo, resistia a carrinhos e não cansava do início ao fim da partida. Era mais letal do que o Ronaldo Fenômeno, eleito o melhor do mundo naquele ano. O personagem lembrava uma música do saudoso Dicró, chamada “O bom de bola”, que dizia “fui jogar na Alemanha bati um corner e ninguém me ajudou, eu corri o campo todo toquei de cabeça e a bola entrou”. Ali, o futebol deixava de ser um esporte coletivo, já que era possível ganhar uma partida jogando só com ele, sem tocar a bola para ninguém.

Na vida real, seja dentro das quatro linhas (no campo) ou ainda em uma escola, ninguém “joga sozinho nas onze”. Vivemos em sociedade e buscamos a coletividade como forma de sobrevivência desde os primórdios da humanidade. Assim, em todos os espaços coletivos encontramos multiplicidade de habilidades e potencialidades. Howard Gardner, cientista americano, aponta a existência de pelo menos uma dezena de inteligências. Tenho 35 anos e até hoje não conheci ninguém que seja uma autoridade nos aspectos linguístico, matemático, musical, intrapessoal e existencial ao mesmo tempo – e olha que eu só citei cinco categorias das elencadas por Gardner. Neste cenário, cabe-nos extrair de nossas comunidades escolares as maiores aptidões e talentos em aspectos variados para construir algo maior.  

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Este movimento só é possível através do fomento de diálogos, com o fim de buscar parcerias e ideias que viabilizem os projetos da escola. Por isso, a escuta apurada passa a ser um diferencial no dia a dia dos gestores. Pierre Marivaux, jornalista e dramaturgo francês, sentenciou no século XVIII que "saber ouvir é quase responder". A consolidação de uma gestão democrática e, consequentemente, descentralizada demanda do diretor o constante exercício da escuta ativa. Para que essa prática seja recorrente e se transforme em ações práticas que atendam a comunidade, é necessário sistematizar e institucionalizar espaços em que tanto a equipe, quanto a comunidade irão sugerir, avaliar, opinar e agir acerca dos caminhos e objetivos da unidade escolar. 

Por que não se trancar em uma gestão absolutista
A troca permanente com professores, funcionários, alunos e responsáveis nos proporcionam ganhos inatingíveis em outras condições. Isto acontece porque a união de uma equipe diretiva, que trabalha ouvindo ativamente – com atenção, interação e resposta – com uma comunidade atuante, forma a base para a construção coletiva do espaço escolar.

Entendo que esse caminho seja mais eficaz do que simplesmente gerir sozinho ou receber feedbacks das ideias e ações. Como em uma pesquisa-ação, em que é necessário intervir durante o processo e analisar constantemente os caminhos seguidos para replanejar e corrigir o curso empiricamente, cabe ao diretor gerir e dispor em benefício da escola potencialidades no momento em que elas surgirem – na esfera administrativa e na pedagógica.

Um exercício que costumo realizar na Ivone Nunes, escola em que sou diretor, é o de observar e mapear quais as habilidades minhas professoras possuem e que me faltam. Eu sou formado em História e trabalhei a vida toda com adolescentes. Aqui, atendemos turmas da pré escola I – alunos com quatro anos – ao 4° ano do Ensino Fundamental. No meu quadro docente tenho professoras que alfabetizam há anos. Também tenho profissionais que trabalham há décadas com os pequenos da Educação Infantil.

Fica evidente no trato da fala com os alunos, na paciência, na dinâmica diferenciada das aulas e no conhecimento das aptidões esperadas para a idade que as professoras da Ivone Nunes são muito mais capacitadas do que eu para lidar com essas crianças. Assim, mais do que uma posição destas professoras, quando eu apresento um projeto, necessito do crivo delas. Aqui, elas sabem que tem abertura plena para adequar, modificar e até vetar uma ideia.

Compreender os nossos próprios limites não nos torna diretores ruins. Ao contrário: nos humaniza durante a tomada de decisões. Entender que a gestão será mais bem sucedida através da soma de potencialidades nos faz respeitar e valorizar o trabalho do outro. Ao mesmo tempo, nos deixa alerta para a necessidade de dispormos de nossas aptidões constantemente.

É importante termos sempre a vista que a gestão não é só nossa. Assim, é imprescindível escutar e construir coletivamente com os nossos parceiros da comunidade escolar. Vamos ouvir!

Um forte abraço,

José Marcos Couto Jr

José Marcos Couto Júnior é formado em História e Mestre em Educação pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 2018, foi eleito Educador do Ano no Prêmio Educador Nota 10. Servidor da Prefeitura do Rio de Janeiro há 10 anos, atua desde fevereiro como diretor na Escola Municipal Professora Ivone Nunes Ferreira, no Rio de Janeiro.

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