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Inclusão: o patinho nunca foi feio

Toda a dor e angustia do protagonista de “O Patinho Feio” surge da visão deturpada de quem estava a sua volta. A percepção e aversão fez com que se consolidasse uma cultura que, historicamente, relegou um imenso número de pessoas com deficiência na escola

POR:
José Marcos Couto Júnior
Crédito: Getty Images

Era uma vez um pato. Ou melhor, era uma vez um cisne que pensava ser muito feio porque acreditava ser um pato – já que tinha nascido em uma família de patos. Ele era diferente e por isso era ridicularizado e maltratado pelos irmãos, por amigos e até pela própria mãe. Amigo leitor, acho que nem preciso dizer que essa história não é minha, concordam?

Como o clássico “O Patinho Feio” de Hans Christian Andersen tem mais de 170 anos, ninguém pode me acusar de dar spoilers por contar o seu desfecho e a sua moral. O livro fala em superação e autoconhecimento. É um conto que atravessou gerações e que apresenta um protagonista cheio de potencial, com uma beleza exuberante, que somente no final descobre-se e percebe as suas qualidades.

A história de Andersen nos possibilita um leque de desdobramentos pertinentes a serem abordados no ambiente escolar. Diante do sofrimento do cisne, é possível debatermos os malefícios da prática do bullying e preconceitos. Abre-se ainda um caminho para falarmos sobre empatia, usando o exemplo dos agricultores que acolheram o personagem principal depois de sua fuga.

No entanto, um aspecto que sempre me chamou a atenção foi: o motor e a condução do conto se encontram na resistência à diversidade. O “patinho” não era feio e o problema nunca foi ele. Toda a dor e angustia do protagonista surge da visão deturpada de quem estava a sua volta. Quem o via se sentia incomodado com aquilo que observava como diferente. Esta mesma percepção e aversão fez com que se consolidasse uma cultura que, historicamente, relegou um imenso número de pessoas com deficiência (PcD) à exclusão social e escolar.

Um mundo enclausurado (em fase de mudança)
No início dos anos 2000, trabalhei por seis meses na Associação de Pais e Amigos dos Excepcionais (APAE) de Niterói. Lá, pude observar o contraste entre dois grupos distintos. Ambos recebiam capacitação para uma série de profissões. Eles eram atendidos por uma equipe multidisciplinar com psicólogos, fonoaudiólogos e terapeutas ocupacionais. Apesar de receberem o mesmo tratamento, o grupo que reunia pessoas com idade avançada quase sempre não respondia como o grupo dos alunos mais jovens.

Em grande parte dos casos, ouvia dos técnicos clínicos que a dificuldade dos alunos mais velhos não se dava necessariamente por eles possuírem um maior grau de comprometimento. O obstáculo se originava no fato de que, décadas atrás, raramente se estimulavam as crianças com terapias. Além disso, o acesso destes indivíduos ao ensino praticamente inexistia. Eram pessoas que tinham passado a sua infância e juventude enclausuradas em um mundo do tamanho de seus quartos, de suas casas. Eles não frequentavam a escola e, por vezes, não recebiam qualquer acompanhamento na área de saúde. Isto acontecia pela falta de informação e pelo preconceito que permeava a cultura de seu tempo.

Desde o final da década de 1970, diversas frentes, em todo o mundo, têm-se levantado com o objetivo de modificar esta realidade de exclusão. Em 1981, foi celebrado pela Organização das Nações Unidas o Ano Internacional das Pessoas Deficientes. Aqui no Brasil, neste mesmo contexto organizou-se o “Movimento político das pessoas com deficiência”. Esse processo refletiu-se no campo educacional. A universalização do ensino apontado pela Constituição de 1988 – seguida de outras leis como o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e a Lei de Diretrizes e Bases (1996) – deu início a uma nova realidade de inclusão das pessoas com deficiências nas escolas, sem precedentes até então.   

Passamos da fase de questionar se precisamos incluir
Dos anos 90 para cá, avançamos muito no acesso à Educação Básica. Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), mais de 99% das crianças de seis a catorze anos estão matriculadas no ensino fundamental. Esta realidade não seria possível sem a escola pública.  É evidente que não devemos deixar de debater a necessidade de evoluir qualitativamente o ensino, para acompanhar o crescimento quantitativo de vagas. Precisamos falar sobre investimento público, valorização da carreira docente, adequação de estruturas de escolas e formação continuada dos professores para uma inclusão efetiva. Porém, é importante lembrarmos que 73,5%, quase três quartos dos alunos na Educação Básica, são estudantes das redes públicas em nosso país. Portanto, é majoritariamente neste espaço que crianças com deficiência, que há meio século passariam a vida sem pisar em uma sala de aula, são recebidas e educadas formalmente.  

Atendemos pessoas com deficiência física, com baixa visão, baixa audição, surdos, cegos e cadeirantes. São matriculadas em nossas unidades escolares meninos e meninas dentro do espectro autista, com deficiência intelectual, como a Síndrome de Down, com transtorno de déficit de atenção e transtorno opositor desafiador. Aprendemos quase por osmose um cem códigos numerais da Classificação Internacional de Doenças (CID). E, junto com eles, nos deparamos com uma série de novos desafios na esfera estrutural e da formação docente.

Não à toa, é na escola pública que encontramos um claro sintoma de que evoluímos. Hoje o foco de nossos debates passou do acesso ou não à escola, para a adequação da escola. Não há mais espaço para pormos em dúvida se devemos incluir. É tempo de pensarmos como iremos incluir. Pierre Bourdieu, filósofo francês, diria que a meta atual seria a de criar meios para não formarmos "excluídos do interior". E uma coisa é certa: a escola pública é protagonista neste desenvolvimento, configurando-se como espaço primaz de inclusão social.

Para aumentar as chances de sucesso
No entanto, a probabilidade de fracassarmos será sempre próxima aos 100%, caso busquemos realizar este processo unicamente por meio da Educação. É necessário baseá-lo em um tripé que envolva a escola, a família e o suporte clínico. Em um cenário ideal estes três segmentos dividem, de forma igualitária, a responsabilidade pela inclusão da pessoa com deficiência. Quando isto não acontece – eu aprendi em dez anos de magistério e seis meses de gestão que quase nunca acontece – o protagonismo da escola pública volta a ser exigido.

Por conta de possíveis fragilidades das famílias (ou pela precariedade das redes de saúde), em geral, o descompasso no tripé demandará um esforço maior das unidades escolares. Ao menos em um primeiro momento professores, coordenadores pedagógicos e diretores precisarão iniciar ações que levem à equalização desta relação. Assim, muitas vezes competirá à equipe pedagógica e diretiva a função de perceber que a criança necessita de ajuda, conscientizando e indicando possíveis caminhos subsequentes aos responsáveis, por meio de relatórios e encaminhamentos.

Alguns leitores podem achar injusto tal encargo sobre a escola. No entanto, os cenários para fora deste procedimento geralmente são tenebrosos. Falo de crianças excluídas dentro de salas de aula. Meninos e meninas que passam pelo espaço escolar como se nunca tivessem estado em uma escola. Um verdadeiro desastre, como alertava Bourdieu. Desta forma, penso que me cabe, como gestor, a responsabilidade de impactar positivamente a minha comunidade escolar como um todo. Isto inclui educar e criar a cultura inclusiva nas famílias atendidas pela nossa escola municipal, a Ivone Nunes. A pergunta é como fazer? 

O debate sobre inclusão escolar é para mim um tema caro, tanto no aspecto profissional, quanto pessoal. Tenho ao menos quatro vivências que compõe a minha visão geral sobre o tema. Fui aluno na década de 1990 e observei os erros e acertos das primeiras tentativas de universalizar o ensino após a promulgação da LDB, em 1996. Como docente, já lecionei para crianças com deficiências, com e sem apoio de estagiários e agentes de educação especial em sala de aula. Sou pai de um lindo menino de três anos e meio, inteligente, divertido, temperamental e que está dentro do espectro autista. Por fim, no último semestre como gestor, tenho a responsabilidade de acompanhar o planejamento educacional individualizado de pelo menos três alunos em minha unidade escolar. Estas crianças com deficiência são oficialmente classificadas como "alunos incluídos" pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro.

Quando afirmo que são “pelo menos três", sem definir um número exato de estudantes, faço isto como uma espécie de ressalva.  Nos últimos meses, temos realizado na Ivone Nunes uma série de conversas e reuniões com os responsáveis dos alunos com baixo rendimento escolar. Os encontros têm como objetivo criar estratégias individualizadas para a recuperação paralela, além de conscientizar os pais sobre a importância de atuarmos em sintonia com a família para melhorarmos o nível de aprendizagem das crianças. Porém, algumas vezes acabamos chegando à conclusão de que nem a escola, nem a família possuem subsídio para equalizar determinadas questões.

Nestes casos, quase sempre o responsável nos solicita auxílio no encaminhamento dos alunos à profissionais de saúde, na busca de apoio. Esta realidade é um indicativo de que o número de estudantes com deficiência, provavelmente, é muito maior do que o apontado pelo sistema. É a dissonância do tripé escola, família e apoio clínico citada acima. Ainda estamos construindo os resultados desta ação, mas posso adiantar que já estamos recebendo algumas respostas muito positivas.

A questão do laudo
Não estamos realizando neste movimento uma "cruzada por laudos". Compreendo e respeito a posição da maioria dos especialistas em Educação inclusiva, que afirmam haver mais malefícios do que benefícios no fechamento de diagnósticos precoce. No entanto, não posso ignorar a minha experiência pessoal como docente e como pai quando entro no gabinete. Assim, entendo que o suporte clínico, por vezes é imprescindível.

Em uma escola, a inclusão oficial de um aluno traz consigo modificações importantes para a estrutura da instituição de ensino e para o planejamento do professor. Por lei, este processo garante a imediata redução de estudantes em suas classes. Além disto abre-se a possibilidade de pleitearmos a presença de estagiários, agentes de educação especial, ou ainda garantir o atendimento em salas de recursos quando necessário, que poderão auxiliar na inclusão da criança.   

Como pai, a busca pelo atendimento neuropediátrico para o João Pedro aos três anos de idade não aconteceu com o objetivo de obter um documento que o enquadrasse no espectro autista. Não me importava se haveria um laudo no final. Mas precisava de orientações de um profissional que me indicasse caminhos para garantir o melhor desenvolvimento das suas potencialidades, diante da condição do meu filho.

Foi este movimento que o possibilitou frequentar sessões com uma terapeuta ocupacional, com uma psicóloga e com uma fonoaudióloga. Hoje, quatro meses após o início do acompanhamento com a equipe multidisciplinar a sua evolução sensorial, comportamental e da sua fala são evidentes. Não tenho dúvidas de que os meus alunos merecem, caso necessitem, destes mesmos cuidados.

Quando a ajuda não vem, o que fazer?
Afirmei ao longo do artigo que, em um cenário ideal, a escola não estará sozinha no processo de inclusão. Mas, às vezes, a ajuda não vem. Ainda assim, não tenho a intenção de negar a responsabilidade das gestões escolares, caso não haja o apoio familiar e clínico. Compreendo a escola e os diretores como elementos ativos do processo de inclusão das pessoas com deficiência. Desta forma, penso que cabe ao gestor fomentar a inclusão em diversas oportunidades dentro do espaço escolar. Com isto, termino este texto deixando quatro ações que realizamos (ou que planejamos realizar ainda este ano) na Escola Municipal Professora Ivone Nunes Ferreira. Passos simples, mas que acreditamos que auxiliarão na formação de uma escola efetivamente inclusiva.

1) A realização de reuniões e debates coletivos junto à comunidade escolar que abordem o tema da inclusão. Este é um importante movimento no sentido de construir um espaço inclusivo, pois são momentos ideias para conscientizar, desmistificar preconceitos, além de nos permitir buscar a construção coletiva de ações que promovam a integração dos alunos com deficiência na escola.

2) A elaboração, com os coordenadores, de projetos pedagógicos que promovam a inclusão ao longo do ano. É sabido que, via de regra, a escola é o primeiro espaço onde as crianças passam a ter contato com códigos morais e éticos diferentes do seu núcleo familiar. Lá se conhece a diferença. Assim, desenvolver atividades que tenham como meta incluir os alunos com deficiência tem um efeito duplo. Ao mesmo tempo em que ensina o respeito imediato às diversidades, é formativo, criando bases culturais inclusivas em médio e longo prazos.

3) Ofertar aos professores momentos de atualização. Sabemos que a formação continuada não está restrita aos programas de pós-graduação ou às atividades institucionais das redes de ensino. Desta forma, os gestores podem criar grupos de estudo, e ainda levar para a escola profissionais da área de saúde, que façam falas e palestras, capacitando os docentes acerca das teorias e práticas mais recentes no campo da inclusão.

4) Por fim, é de extrema importância a criação e a supervisão permanente dos planejamentos educacionais individualizados (PEIs), assim como de relatórios periódicos dos alunos com deficiência. Da mesma forma que os pareceres médicos auxiliam o planejamento de atividades e avaliações dos alunos com deficiência na escola, é baseado nestes documentos que elaboramos que os responsáveis e os profissionais de saúde compreenderão o desenvolvimento das crianças em sua interação com os seus colegas. Quando falhamos neste ponto, somos nós que contribuímos para a dissonância do tripé escola, família e apoio clínico.

Um forte abraço,

José Marcos Couto Júnior

José Marcos Couto Júnior é formado em História e Mestre em Educação pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 2018, foi eleito Educador do Ano no Prêmio Educador Nota 10. Servidor da Prefeitura do Rio de Janeiro há 10 anos, atua desde fevereiro como diretor na Escola Municipal Professora Ivone Nunes Ferreira, no Rio de Janeiro.