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A oportunidade de criar pontes entre a universidade e a escola

Para encurtar a distância entre a metodologia educacional e o chão de sala, é preciso conectar estes saberes. A gestão escolar pode ser essa ponte

POR:
José Marcos Couto Júnior
Crédito: Skitterphoto from Pexels

Conta a mitologia grega que o trabalho de criação dos seres vivos foi dado a dois irmãos titãs, Epimeteu e Prometeu. Epimeteu não teria gerenciado bem os materiais disponíveis e quando chegou o momento de criar o homem havia sobrado apenas um punhado de barro. Prometeu teria tido uma solução inovadora para finalizar a criação do novo ser: roubar o fogo de Héstia – uma exclusividade divina – e entregá-lo aos seres humanos, garantindo sua supremacia sobre os outros animais.

Esta decisão não ficou impune. Prometeu foi acorrentado ao Monte Cáucaso, para que o seu fígado fosse diariamente devorado por uma águia. Como era imortal, o órgão sempre se regenerava no dia seguinte, fazendo com que o castigo fosse eterno.

Durante séculos, a lenda do "Prometeu Acorrentado" acaba afirmando a existência de um abismo quase intransponível entre as divindades e os seres humanos. Ainda assim, Prometeu ganhou status de herói entre os que ouviram sua lenda. Isto acontece porque o titã teve a coragem de ousar e criar uma ponte entre duas realidades tão distintas. Amigo leitor, assim como na mitologia, esse texto não pretende falar apenas sobre distâncias aparentemente intransponíveis. Hoje quero conversar como vocês sobre como criar pontes através da gestão escolar.

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Universidade X chão da escola: o perigo está na divisão

Desde que iniciei a minha vida acadêmica, no início dos anos 2000, ouço de forma recorrente que “existe um abismo entre o conhecimento universitário e o chão da escola”. Por isso, nos últimos 10 anos, entre o magistério e a gestão, tenho buscado interligar estes extremos, tentando criar práticas que dialogassem com conhecimentos teóricos. Felizmente, convivi com muitos professores e diretores que faziam este mesmo movimento.

Arriscamos mais do que o nosso fígado nesta missão. Por vezes, recebemos críticas e somos vistos como “ingênuos” ao insistir em alinhar práticas educacionais às teorias do campo da Educação. Valorizo o conhecimento não acadêmico. Não concordo com a ideia de que o saber esteja restrito às universidades. No entanto, defendo que a gestão escolar e as políticas educacionais devam ser desenvolvidas e lideradas por educadores. Daí a necessidade em aproximar as distâncias entre os saberes da academia e da escola.

Nunca vi ninguém, sem a devida qualificação, questionar um cardiologista quando este prescreve uma cirurgia cardíaca. Porém, há algum tempo tenho presenciado professores sendo chamados de “doutrinadores” ao invocarem educadores como Darcy Ribeiro e Paulo Freire, que conseguiram com maestria aproximar as pesquisas universitárias das práticas docentes. Freire, o Patrono da Educação nacional, afirmava que “a teoria sem a prática vira ‘verbalismo’, assim como a prática sem a teoria vira ativismo. No entanto, quando se une a prática com a teoria tem-se a práxis, a ação criadora e modificadora da realidade”.

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Entendo que este cenário tenha se formado com a percepção de que a universidade e a Educação Básica são mundos distantes. Separar estes elementos é extremamente perigoso. Esses saberes são indissociáveis e complementares. Uma pesquisa educacional só ganha sentido ao ser testada na prática. Em contrapartida, nas escolas, o desenvolvimento de práticas sem qualquer base teórica pode ser comparado a um jogo de roleta russa, no qual se flerta constantemente com resultados desastrosos. 

Afirmar que a escola e a universidade encontram-se separadas é dar margem ao sucateamento das universidades públicas. Ao negar a interdependência destas esferas criamos hierarquias entre elas. Quando uma é mais importante do que a outra, caso haja o corte de investimentos, fatalmente a “menos importante” acabará sendo asfixiada.

A descrença na criação de pontes entre a universidade e o chão da escola poderá matar a pesquisa educacional em nosso país. Temos diante de nós, porém, uma solução mais simples do que roubar o fogo divino. Gestores educacionais, em todos os níveis, podem encurtar a distância entre estes dois mundos, incorporando discursos e ações que provem de uma vez por todas que não existe escola sem o conhecimento acadêmico, ao mesmo tempo em que afirmam que não há sentido em formar educadores sem ancorar-se na escola como base prática. Vamos criar pontes?

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As gestões educacionais e escolares conectando saberes

Muito se fala em boas práticas na gestão e é evidente que as ações de sucesso podem, dentro de especificidades, serem replicadas. No entanto, acredito que caso queiramos pensar em uma real evolução educacional no Brasil, precisamos focar na consolidação de políticas públicas para a Educação, ao invés de nos prendermos às experiências isoladas.

Um movimento que defenda a valorização do saber acadêmico e ao mesmo tempo fomente a coleta de dados e a pesquisa nas escolas deve ser realizado por gestores em todos os níveis – nas secretarias de Educação, nas coordenadorias regionais e nas escolas. O principal efeito deste processo é o aprimoramento docente e o aumento do número de professores-pesquisadores nas salas de aula.

É evidente que a vontade política se faz necessária para que haja um ambiente propício à aproximação da pesquisa com a prática escolar. Este desejo político trará os mesmos resultados seja ele genuíno, ou fruto da pressão e organização dos docentes: respeito ao tempo de planejamento dos professores (que assim poderão se especializar), criação de financiamento destinados aos docentes que busquem cursos de especialização, além da aprovação de planos de carreira que valorizem profissionais que possuam pós-graduação.

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Pensando no nível da gestão escolar, podemos citar algumas ações que podem auxiliar na construção destas desejadas pontes:

- Utilização de centros de estudos para a realização de debates metodológicos, norteando o cotidiano escolar;

- Abertura das escolas para o desenvolvimento de projetos de pesquisa em parcerias com universidades;

- Criação de projetos que aproximem a comunidade escolar do contexto acadêmico, como a visitação de campos universitários com os alunos, ou a organização de cursos pré-vestibulares comunitários, em períodos ociosos da escola.

As ações são muitas e o tempo de agir é agora.

José Marcos Couto Junior ao lado do ex-aluno Víctor Rangel     Crédito: Acervo pessoal

O nosso fogo de Héstia

Por fim, os gestores escolares devem atentar para um trunfo recente nesta missão de aproximar saberes: a presença de ex-alunos da escola pública dentro das universidades e da escola. Aqui entra a minha confissão, contando o nome que me inspirou a fazer esta reflexão: Víctor Rangel.

O Víctor foi meu aluno no sexto ano da Escola Municipal Abrahão Jabour, no Rio de Janeiro. Isso foi há nove anos. Hoje ele é estudante do quinto período da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e trabalha como estagiário na Ivone Nunes, escola onde atualmente sou diretor. A história do Víctor é semelhante à minha: um aluno de escola pública, nascido e criado na favela, graduado em universidade pública e que retornou para o ambiente escolar com o know-how de quem vivenciou a realidade do chão da escola sob múltiplos olhares. E isso faz uma diferença enorme.

Sempre tive o hábito de realizar autoavaliações com as minhas turmas. De maneira recorrente ouvia que eles gostavam das aulas de História porque eu “sabia falar como eles, os entendia e me importava com eles”. Ter empatia e compreender a realidade dos discentes não é um elemento exclusivo de professores que viveram em comunidades, ou em regiões periféricas. Porém, como canta Zeca Pagodinho, “o dono da dor sabe o quanto dói”. O fato é que vivemos as fragilidades e potencialidades da escola pública como alunos e agora voltamos para ela. Mas esta realidade é bem recente. 

É notório o impacto das políticas afirmativas das últimas décadas sobre a vida dos jovens moradores de comunidades. Novamente, eu me incluo neste grupo como ex-morador do Morro do Marítimos, em Niterói, aluno de escola pública e cotista na Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Sei que o debate sobre as cotas na totalidade ou em suas especificidades renderia um novo artigo, então não entrarei no mérito aqui.

No entanto, é inegável o fato de que nos últimos 16 anos, desde o primeiro vestibular com cotas da UERJ, a universidade tem-se configurado como um espaço mais democrático, acessível e plural. Lembro-me de ouvir quando criança a introdução da música “Capítulo IV, Versículo 3”, dos Racionais MC’s, onde o rapper Primo Preto declamava “nas universidades brasileiras apenas 2% dos alunos são negros”. Em 1997, eu tinha 13 anos e aprendia com o CD dos Racionais uma pequena lição sobre a desigualdade social no país. Isso está mudando, e netos de avós analfabetos, com pais que só cursaram a Educação Básica, estão chegando aos bancos das faculdades.

A grande notícia é que os nossos alunos não estão apenas se formando, eles estão voltando à escola pública. Amigo leitor, amigo gestor, penso que este pode ser o nosso fogo de Héstia, na conexão dos saberes universitário e escolar. Não deixemos a oportunidade passar.

 

Um forte abraço,

 

José Couto Júnior

José Marcos Couto Júnior é formado em História e Mestre em Educação pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 2018, foi eleito Educador do Ano no Prêmio Educador Nota 10. Servidor da Prefeitura do Rio de Janeiro há 10 anos, atua desde fevereiro como diretor na Escola Municipal Professora Ivone Nunes Ferreira, no Rio de Janeiro.

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