Lei do Piso: como equilibrar as contas
Conheça os desafios que três redes de ensino enfrentam para ampliar os investimentos e garantir mais salário e tempo para a formação em serviço
POR: Aurélio AmaralA valorização da carreira docente é pré-requisito essencial para que o Brasil avance na melhoria da qualidade da Educação pública ofertada. Uma conquista importante nesse sentido foi a lei nº 11.738, mais conhecida como Lei do Piso, que instituiu, pela primeira vez, um vencimento mínimo inicial em todo o país para o magistério de formação de nível médio, com revisão anual.
O valor atual do piso é de 1451 reais para os contratos de 40 horas semanais - um aumento de 22,22% em relação a 2011. O reajuste, concedido pelo Ministério de Educação (MEC) em fevereiro, ganhou relevância depois que o Supremo Tribunal Federal (STF) votou pela constitucionalidade da lei em agosto do ano passado, tornando obrigatório o seu cumprimento (leia mais sobre o tema no quadro abaixo).
Além da questão salarial, outro ponto importante da norma diz respeito à jornada de trabalho, que deve ter somente dois terços, ou 67% de sua carga horária, destinados à sala de aula. Na prática, isso significa que um terço, ou 33% das horas totais trabalhadas, seja utilizado para momentos de estudo, planejamento e avaliação - atividades já previstas pela Lei de Diretrizes de Bases da Educação Nacional (LDB), de 1996, ainda que nem sempre executadas.
Para os professores, que convivem com baixa remuneração, ausência de planos de carreira e condições de trabalho precárias, o direito legal a um salário mais digno e à formação continuada significa um alento. Porém, para as redes de ensino e os gestores, pôr em prática essas propostas é um grande desafio. Além de um custo maior por funcionário em folha de pagamento, garantir um terço do tempo docente a atividades extraclasse implica a ampliação de cerca de 20% da equipe, segundo estimativas da União de Dirigentes Municipais de Educação (Undime). Não são mudanças fáceis ou rápidas, já que exigem revisão do orçamento da Secretaria de Educação, ajustes financeiros, reestruturação do setor de recursos humanos, modificações nos planos de carreira, abertura de concursos públicos e até mesmo eventuais alterações curriculares. "São transformações profundas demais, envolvendo as contas e os recursos humanos da Secretaria, para conseguir colocá-las em prática em dois ou três anos", afirma Cleuza Repulho, presidente da Undime.
Segundo levantamento da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE), realizado em abril com base nas 27 unidades da federação, somente cinco cumprem a Lei do Piso. Se considerados apenas os que honram com o vencimento, são 13 estados e o Distrito Federal. Outros nove atendem apenas à jornada (veja o mapa abaixo). Não há dados oficiais sobre os municípios.
O fato é que diante da obrigatoriedade definida pela legislação, as redes de ensino têm se esforçado para atendê- la - ainda que isso leve tempo.
Quem cumpre o piso e a jornada
Conheça as redes estaduais que pagam o vencimento e respeitam o tempo de formação e planejamento
STF exige obedecer a lei
Tribunal derruba medida cautelar e obriga estados a cumprir o piso e garantir a jornada extraclasse
Após a aprovação da Lei do Piso, em 2009, os governos de Ceará, Mato Grosso do Sul, Rio Grande do Sul e Santa Catarina entraram com uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn) no STF. Eles alegaram que criar um piso salarial nacional e ter 33% da jornada para atividades extraclasse implicaria um alto custo financeiro e feriria o pacto federativo, pois a União estaria interferindo no regime de contratação de servidores estaduais e municipais. Os estados também questionaram os prazos para implementar a lei e a vinculação do piso ao vencimento inicial. Eles defenderam que as gratificações e os bônus pudessem ser considerados no vencimento. Até que a ADIn fosse julgada, uma medida cautelar suspendeu a exigibilidade da lei e muitas redes de ensino se recusaram a fazer as adequações. Em 2011, porém, o STF ratificou a constitucionalidade do piso e, apesar do empate na votação sobre a jornada, que irá a nova consulta, tornou obrigatório o cumprimento das medidas.
Município cria plano de carreira vinculado à formação e valoriza a profissão
Lages, a 218 quilômetros de Florianópolis, por exemplo, não paga o valor revisado do piso salarial. Após negociações entre o sindicato dos professores e as Secretarias de Finanças e Educação, a prefeitura concedeu um aumento de 8% no salário dos professores com carga horária de 40 horas semanais, retroativo a janeiro, e em abril ofereceu 6% de acréscimo. Dos 655 reais, pagos em 2008 (antes de a lei entrar em vigor), o salário passou para 1.354 reais atualmente - faltando ainda 8,22% para completar o reajuste determinado pelo MEC no início do ano, o que, segundo o governo municipal, não tem data programada para acontecer (veja dados no quadro abaixo).
É positiva, no entanto, a iniciativa de priorizar a carga horária de 40 horas, o que pode evitar o acúmulo de vínculos. Uma pesquisa da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco), feita em 2008 com professores brasileiros do 5º ano, mostrou que quase 30% deles dão aula em mais de uma escola, trabalhando, em média, 46 horas semanais. Além de sobrecarregá-los, essa realidade dificulta a organização dos horários de atividades pedagógicas coletivas.
A rede de ensino de Lages elaborou também um plano de carreira no ano passado, atrelando o salário à formação profissional - o que não está previsto na Lei do Piso. Assim, um educador com curso superior passou a ter um vencimento inicial 35% maior do que aquele com nível médio, podendo ganhar um acréscimo de 20% ao finalizar o mestrado e 20% com o doutorado.
Tal medida é um avanço diante da lei, que, embora faça referência à carreira, não estabeleceu diretrizes nacionais de progressão salarial conforme o nível de estudo do educador, sendo que a maioria dos docentes brasileiros - 70% - tem pelo menos a graduação completa. "Essa brecha leva à desvalorização da formação e representa um risco de achatamento da profissão, justamente o contrário do que propõe a lei", explica Luiz Araújo, mestre em políticas públicas em Educação pela Universidade de Brasília (UnB).
Lages, SC
Principal desafio Contratar cerca de 50% a mais de professores e mais que dobrar os vencimentos iniciais.
O que foi feito Aumentaram os investimentos em Educação - de 26,76% do total do município para 33,96% -, realizaram concursos públicos e negociaram um novo plano de carreira.
2008 | Hoje | |
Piso | R$ 624,61 e R$ 441,37* | R$ 1354 |
Carga horária semanal | 20 ou 40h | 20 ou 40h** |
Jornada extraclasse | 20% | 33% |
Formação e planejamento | 4h na Secretaria e 4h na escola | 8h na Secretaria e 5h20 na escola |
Orçamento | R$ 43.349.443,78 | R$ 76.549.791,69*** |
Número de professores | 1044 | 1422 |
* Para os professores da Educação Infantil. ** Na Educação Infantil, todos têm regime de 40
*** Desde 2011. Dados levantados em abril de 2012
Tempo extraclasse é mais bem utilizado quando há diretrizes claras sobre o tema
Outra lacuna que a Lei do Piso não esclarece diz respeito a como o período fora da sala de aula deve ser aproveitado. Segundo o advogado Salomão Ximenes, da Ação Educativa, em São Paulo, pelo termo "jornada de trabalho", infere-se apenas que ela deva ser cumprida em ambiente profissional. Para evitar que esse tempo seja usado sem nenhuma orientação, os estados e municípios deveriam regulamentar a jornada e estabelecer normas para as horas-atividades que delineiem o trabalho da coordenação pedagógica. "Deixar o professor decidir o que fazer nesse intervalo é arriscado, visto que não temos uma cultura ligada à autoformação", explica Alexsandro Santos, formador do Núcleo de Avaliação da Comunidade Educativa Cedac, em São Paulo.
Em Lages, a Secretaria estabeleceu diretrizes para a formação, modificou a carga horária e aumentou o número de professores. Na Educação Infantil, aqueles que tinham contrato de 20 horas mudaram o regime para 40. Dessa forma, foi possível manter o tempo de sala de aula e ampliar a jornada extraclasse de 20 para 33% das horas totais trabalhadas. No caso do Ensino Fundamental, porém, foi necessário contratar novos docentes com jornadas de 20 horas semanais e fazer uma reformulação no currículo e na grade de horário. As mudanças fizeram o orçamento da Secretaria de Educação passar de 43,3 milhões de reais, em 2008, para 76,5 milhões, em 2011. "Reavaliamos gastos em infraestrutura e cortamos despesas administrativas, mas mantivemos investimentos prioritários", explica o secretário de finanças, Walter Mafroi.
Os alunos passaram a ter mais aulas por dia, porém elas se tornaram mais curtas. Com a equipe ampliada, cada professor pôde se dedicar a um número menor de turmas. Nas séries iniciais do Ensino Fundamental, além do professor polivalente, o de Arte e o de Educação Física, foi incorporado um profissional de Língua Portuguesa para trabalhar Literatura e Produção Textual. Nas séries finais, as disciplinas de Matemática, Língua Portuguesa, História e Geografia ganharam mais peso. "O planejamento desses conteúdos era engessado por causa da falta de tempo. Agora, os docentes podem trabalhar os temas com mais profundidade", explica Jane Bender, diretora da EMEB Pedro Cândido, de Lages.
Embora seja uma solução para preencher os horários de aula vagos devido à mudança da jornada extraclasse, a contratação de educadores com cargas horárias menores é vista como um entrave à formação de qualidade, pois fica mais difícil reunir todo o grupo para as reuniões. "Ao perder parte dos momentos coletivos, o trabalho desse professor ?tampão? corre o risco de não dialogar com a proposta pedagógica da instituição", avalia Alexsandro Santos.
O ideal seria que todos tivessem a mesma jornada para que ninguém se abstivesse dos momentos formativos. Mas, diante da variedade de regimes de trabalho, cabe à equipe gestora programar um horário compatível com o de todos, inclusive com o daqueles com designação temporária. Foi o que fez a EMEB Nossa Senhora da Penha, no município catarinense, que promove encontros coletivos nos dois turnos para que os professores que cobrem os horários dos polivalentes nos anos iniciais possam participar da formação. Na segunda etapa do Fundamental, a grade foi organizada de modo que os pares de uma disciplina cumprissem as horas-atividades juntos.
Tempo de formação na balança
Não garantir 1/3 da jornada para atividades extraclasse sobrecarrega os professores.
Veja duas formas de assegurar o equilíbrio
A Mudar o regime de trabalho: ampliar a carga horária total e, com isso, o tempo de formação
B Diminuir o tempo em sala de aula e contratar mais professores
Pagamento proporcional é opção - polêmica - ao cumprimento do piso
No Espírito Santo, assim como em Lages, a Secretaria de Educação reduziu o número de horas em sala de aula e aumentou a equipe para garantir o cumprimento das atividades extraclasse. Para tanto, foram contratados professores temporários. Segundo o secretário de Educação Klinger Marcos Barbosa Alves, será aberto um concurso público com cerca de 2,4 mil vagas efetivas, o que corresponde a 6,7% do quadro total atual, porém sem data prevista.
Para cumprir o piso, foi criado um novo plano de carreira para os professores com carga horária de 25 horas semanais - regime da maioria do quadro docente do estado - oferecendo salários de R$ 906,72 - valor do piso proporcional às horas trabalhadas (veja dados no quadro abaixo). "Essa interpretação da lei, embora possível, contraria o conceito de piso, que seria o de um valor mínimo unificado para o todo o país", analisa Salomão. Segundo o sindicato, o novo plano de carreira não se mostrou vantajoso para os professores por não incorporar as gratificações do plano antigo. O governo alega que os gastos em folha de pagamento quase dobraram: passaram de 671,7 milhões, em 2008, para 1,1 bilhão, em 2012.
Para organizar melhor a jornada extraclasse, a secretaria instituiu dias fixos para a formação coletiva nas unidades de ensino, organizando-a por área do conhecimento. Na quarta-feira, por exemplo, a coordenação pedagógica se reúne com os professores de ciências e na quinta-feira, com os de linguagem.
Na EEEFM Clovis Borges Miguel, em Serra, na Grande Vitória, 31 dos 50 professores são temporários. Cerca de metade deles tem carga de 25 horas, a mesma dos contratos efetivos, e, assim, não há problema de cronograma quanto à formação. No caso daqueles que trabalham menos horas, a diretora, Claudete Radaelli, busca alternativas: os professores de 15 horas, por exemplo, têm o horário organizado de modo a garantir a participação nas reuniões formativas no período das atividades extraclasse.
Ao criar uma sistemática para os momentos de estudo coletivos, a rede sentiu a necessidade de investir também na formação dos coordenadores pedagógicos, cujas rotinas sofrem grandes mudanças nesse processo de reestruturação de jornada. Assim, a Secretaria da Educação do estado previu a realização de ciclos formativos para ajudar esses profissionais a planejar melhor as atividades coletivas.
Espírito Santo
Principal desafio Garantir o tempo fora de sala de aula para planejamento e formação coletiva.
O que foi feito Ampliação da jornada extraclasse e estabelecimento de dias fixos para facilitar a organização dos encontros por área de conhecimento.
2008 | Hoje | |
Piso | R$ 703,50* | R$ 907* |
Carga horária semanal | 25h | 25h |
Jornada extraclasse | 20% | 33% |
Formação e planejamento | 5h só para atividades individuais | 5h para estudo coletivo e 3h20 de atividades individuais |
Orçamento | R$ 751.171.926,00 | R$ 1.123.424.924,00** |
Número de professores | 22,3 mil | 36 mil |
* Valor do piso proporcional à carga horária. ** Desde 2011. Dados levantados em abril de 2012
Ampliação da carga horária é alternativa para assegurar os momentos de formação
Em João Pessoa, a prefeitura cumpre o pagamento do piso desde que a lei foi aprovada, há três anos. Em relação à carga horária, em vez de contratar mais docentes para dar conta das mudanças, o governo decidiu ampliar a jornada total, oferecendo o regime de 30 horas semanais - sendo dez horas para as atividades extraclasse (veja mais dados no quadro abaixo). A decisão dependeu da negociação com o sindicato da categoria e da adesão dos professores ao novo plano, já que nenhum servidor pode ser obrigado a mudar a carga horária de trabalho.
Dessa forma, houve um aumento de gastos da pasta de 131 milhões reais, em 2008, para 211 milhões, em 2011, que, segundo a secretária de Educação, Ariane Norma, foi proporcional ao crescimento do orçamento municipal. A rede de ensino se reorganizou de maneira que a folha de pagamento fosse priorizada. "Entre 2003 e 2008, fizemos um investimento pesado em infraestrutura. Por causa disso, as despesas com esse setor, hoje, não têm impacto tão forte nas contas e nos permitem cumprir com as obrigações salariais", explica a secretária.
Fora Lages, Espírito Santo e João Pessoa, muitos outros governos estão no caminho para atender às exigências da Lei do Piso. Fica evidente, nesse momento, a importância do planejamento e da parceria entre os supervisores e técnicos das Secretarias com as equipes gestoras para afinar as diretrizes e políticas públicas que guiarão o trabalho pedagógico. Afinal, a reestruturação implicada pela lei federal tem um objetivo maior: a melhoria das condições de ensino e aprendizagem nas escolas brasileiras.
João Pessoa, PB
Principal desafio Mudar a carga horária dos docentes.
O que foi feito Negociação com o sindicato e proposta de um novo plano de carreira, que passou a prever progressões salariais de acordo com o nível de formação.
2008 | Hoje | |
Piso | R$ 690 | R$ 1.531,60 |
Carga horária semanal | 25h | 30h |
Jornada extraclasse | 20% | 33% |
Formação e planejamento | 5h | 5h para estudo coletivo e 5h para atividades individuais |
Orçamento | R$ 131.706.224,87 | R$ 211.397.741,65 |
Número de professores | 1.497 | 1.803 |
Dados levantados em abril de 2012
O que diz a norma
Saiba se sua rede de ensino cumpre as determinações da Lei do Piso
Remuneração e vencimento O piso se refere ao vencimento inicial da carreira. Gratificações e bônus não podem ser incorporados para atingir o valor estabelecido. Esse foi um dos itens contestados pelos estados signatários da Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADIn). O STF, porém, ratificou o conceito de vencimento inicial como proteção mínima e princípio de valorização docente.
Piso proporcional Os valores fixados pela lei são referentes às jornadas de 40 horas dos professores regulares ou temporários. Regimes mais curtos devem ter salários no mínimo proporcionais. Apesar de a lei permitir essa interpretação, o pagamento proporcional contraria o conceito do piso. "O valor mínimo visa garantir que o professor não ganhe menos que o determinado. Do contrário, a profissão docente é desvalorizada", diz o advogado Salomão Ximenes, da Ação Educativa, em São Paulo.
Plano de carreira A menos que isso esteja previsto no concurso público por meio do qual o servidor ingressou na rede, as Secretarias não podem alterar o regime de carga horária. A solução, nesses casos, é oferecer um plano de carreira mais vantajoso, para o qual os profissionais poderão migrar. Gratificações criadas por atos administrativos podem ser extintas da mesma forma. Por isso é importante ter uma lei que regulamente a carreira.
Jornada extraclasse A lei estipula dois terços da carga horária para atividades de interação com os educandos. Atendimento individual a alunos e aulas de reforço, portanto, não fazem parte da jornada extraclasse. Cabe aos municípios e estados regulamentar como esse período fora da sala de aula será usado. Para Ximenes, vai contra a lei que ele seja cumprido em casa, por exemplo. "Se esse tempo faz parte da jornada, deve ser usado no local de trabalho."
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Download da publicação A Lei do Piso Salarial no STF: Debates sobre a Valorização do Magistério e o Direito à Educação, coordenada por Ação Educativa e Campanha Nacional pelo Direito à Educação.