Ensino integral: mais tempo para ensinar. E agora?
A extensão da carga horária impacta a rotina da escola. Nesta reportagem, os desafios que a equipe gestora precisa enfrentar - e as soluções de cada um deles
POR: Fernanda Salla, GESTÃO ESCOLAR, Aurélio AmaralMesmo que a instituição em que você trabalha ainda não esteja atendendo os alunos em tempo integral, certamente a discussão sobre a ampliação da carga horária já chegou às reuniões dos gestores, pois está na pauta de todas as Secretarias de Educação do país. A oferta de vagas em jornada de no mínimo sete horas vem aumentando ano a ano - e virou política pública prioritária, tanto que o objetivo do Plano Nacional de Educação (PNE) é chegar a 2020 com metade das escolas e um quarto dos alunos das redes públicas nesse regime (veja gráfico abaixo).
Para as escolas, trata-se de uma mudança e tanto. É preciso ampliar o currículo, rever a duração das aulas e adaptar os espaços. Ainda é preciso reorganizar as turmas e o número de professores e funcionários e recalcular a quantidade de material e merenda. Para o bem e para o mal, não existe um modelo de organização nem tampouco um consenso sobre de que maneira as horas a mais podem contribuir para a aprendizagem dos alunos. Se por um lado as redes e as unidades têm liberdade para decidir o que fazer com as horas que passam a mais com as crianças, por outro há o risco de a falta de parâmetros levar a ações vazias e sem impacto na formação dos alunos.
Contudo, há alguns consensos. O primeiro é que somente ter uma carga horária maior não é determinante para que os estudantes tenham bom desempenho - entre os primeiros colocados do Programa Internacional de Avaliações de Alunos (Pisa), estão os finlandeses, cuja jornada é de cinco horas nas séries iniciais. "Ficar mais na escola só é bom para o estudante quando as atividades são planejadas e têm objetivos claros e há um maior contato dele com o conhecimento", afirma Sergio Martinic, professor da Pontifícia Universidade Católica do Chile (PUC-Chile) e pesquisador da relação entre tempo e aprendizagem. Daí a importância de investir na decisão sobre o currículo.
Outra unanimidade entre os especialistas é a importância social da permanência na escola. No Brasil, essa concepção remete aos ideais dos educadores Anísio Teixeira (1900-1971) e Darcy Ribeiro (1922-1997). Para eles, a instituição de ensino deve investir também na formação humanística e na inserção social dos alunos (leia a linha do tempo na próxima página).
É justamente este um dos principais argumentos do Ministério da Educação (MEC) na defesa da expansão do ensino integral: diante das desigualdades sociais, é preferível que os educadores se responsabilizem pelas crianças por mais tempo a deixá-las nas ruas. "Em muitas famílias, não há quem as mantenha afastadas da violência", afirma Jaqueline Moll, diretora de Educação Integral do MEC.
Com esse objetivo, o Programa Mais Educação, criado pelo governo federal em 2007, financia o aumento da carga horária nas redes estaduais e municipais, priorizando as unidades localizadas em regiões de vulnerabilidade social e com baixo Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb). Até 2011, cerca de 15 mil instituições haviam aderido ao programa. A questão é: como vencer o desafio de ampliar a oferta justamente nos locais que são mais carentes de recursos e infraestrutura?
Segundo Jaqueline, é possível chegar a uma solução sem gastar muito em reformas estruturais ou na contratação de pessoal. O Mais Educação aposta na colaboração de instituições vizinhas à escola que possam ceder seus espaços e no trabalho de voluntários - preferencialmente universitários, professores aposentados e especialistas - dispostos a contribuir com seu conhecimento específico (um mestre de tae kwon do ou de xadrez, por exemplo) para a formação das crianças. Nesse caso, as despesas de transporte e alimentação são custeadas pelo Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE). O MEC sustenta que o contato com os profissionais externos traz novas experiências à escola e a aproxima da comunidade - argumento que também justifica a utilização de locais alternativos para as atividades, como quadras públicas, praças, parques e centros culturais.
Nos pontos relativos aos profissionais que ministram as oficinas e os lugares em que elas acontecem, o governo encontra alguma resistência. Boa parte dos educadores defende que as funções de ensinar devem ser ocupadas por docentes especializados - necessitando, nesse caso, ampliar as contratações da rede para atender à demanda. "Educação de qualidade se faz com profissionalismo. O ideal é que os alunos estejam sempre acompanhados por gente preparada para educar e que receba formação específica para isso: os professores", defende Lígia Martha Coelho, coordenadora do Núcleo de Estudos de Tempos, Espaços e Educação Integral, da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio).
Em relação aos espaços alternativos, Lucia Helena Alvarez, professora da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), afirma que as parcerias não podem servir para tapar buracos: "A formação humana e social faz parte da concepção de ensino integral e, por isso, a escola precisa se relacionar com o entorno. Contudo, isso não pode ser desculpa para a falta de infraestrutura. A instituição precisa ser suficientemente equipada para atender à demanda de aulas".
Como não há modelos definidos, é possível encontrar no Brasil vários arranjos de tempo e espaço funcionando de forma eficaz. Algumas iniciativas - como contratações, reformas estruturais e aumento da merenda - deverão ser assumidas pela rede de ensino. Outras dependem de decisões da equipe gestora. E é nos pontos que estão a cargo da escola que esta reportagem irá se focar. Aqui, você vai conhecer os principais desafios que a instituição enfrenta na hora de ampliar a jornada e como solucioná-los.
Crescimento veloz
O número de matrículas em ensino integral* na Educação Básica no ano passado foi cinco vezes maior que há cinco anos. Mas isso ainda é apenas um sexto da meta do Plano Nacional da Educação para 2020.
Uma nova concepção de ensino
As primeiras experiências de jornada ampliada são antigas. Mas só agora elas se consolidaram como tendência.
Década de 1950
Escolas-parque
Enquanto secretário de Educação da Bahia, Anísio Teixeira idealizou instituições em que os alunos receberiam em um turno o ensino tradicional e, no outro, a Educação social e humanística. Contudo, a experiência pioneira não teve continuidade.
Década de 1980
Centros Integrados de Educação Pública (CIEPs)
Criados por Darcy Ribeiro com a proposta de desenvolver também atividades desportivas, artísticas e de formação profissional. Hoje, grande parte dos CIEPs (75%) do estado do Rio de Janeiro não é mais integral.
1996
Lei de Diretrizes e Bases (LDB)
Segundo o artigo 34, a permanência na escola deverá ser ampliada progressivamente - o que consolida uma tendência da Educação brasileira ao ensino integral.
2007
Programa Mais Educação
Criado pelo Ministério da Educação (MEC), o programa financia a ampliação do tempo de aula prioritariamente em escolas de baixo Ideb e localizadas em territórios de vulnerabilidade social.
Estruturar o currículo
O MEC não estipula diretrizes curriculares para o ensino integral, porém estabelece dez áreas do conhecimento a fim de orientar a escolha das disciplinas. São elas: acompanhamento pedagógico, Meio Ambiente, Esporte e Lazer, Direitos Humanos, Cultura e Artes, Cultura Digital, Prevenção e Promoção da Saúde, Educomunicação, Educação Científica e Educação Econômica. O aconselhável é que escolas com baixo desempenho deem atenção especial ao acompanhamento pedagógico (aulas de reforço, monitoramento para a lição de casa etc.).
Quando a escola tem autonomia, é interessante envolver a comunidade na elaboração do currículo. A EM Marechal Ribas Júnior, em Goiânia, selecionou as oficinas após consultar o conselho escolar. No fim do ano, os alunos são avaliados e também dão sua opinião sobre as atividades. Os resultados ajudam o conselho a reavaliar as propostas e a deliberar se o currículo do ano seguinte será mantido ou não.
Outra questão a ser resolvida é como encadear as disciplinas e as oficinas. Deixar as primeiras em um turno e as segundas em outro é mais fácil? Talvez. Porém, na Marechal Ribas, os gestores perceberam que os alunos davam importância apenas ao turno da manhã e viam a tarde como um horário de brincadeira - quando o que se queria era que tudo tivesse o mesmo valor. Outras escolas tiveram essa mesma sensação. A solução foi então pedir à rede para intercalar aulas e oficinas. "Ambos os esquemas podem funcionar desde que os gestores concebam o currículo como um projeto único e atribuam sentido às atividades", afirma Ilana Laterman, professora da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).
Definir horários
Quantas vezes por semana oferecer cada oficina? Quantos minutos terá cada uma? O tempo é a mudança mais nítida do ensino integral. Com aproximadamente o dobro de horas e tendo a responsabilidade de manter as crianças envolvidas com as propostas pedagógicas, os gestores podem se questionar se as atividades diversificadas precisam ter a mesma duração das aulas do currículo estruturante. O CEM São Luiz, em São José, na Grande Florianópolis, achou que não - e precisou fazer um bom exercício para montar a rotina.
Até o ano passado, todas as aulas tinham 45 minutos. No começo deste ano, quando foi ampliada a carga horária, Xadrez, Dança, Arte Visual e Música foram previstas seguindo essa regra. No entanto, os professores notaram que as atividades propostas ganhavam ritmo e envolviam mais os alunos justamente quando o sinal já estava para tocar. Após discutir o assunto com a coordenação pedagógica, a direção decidiu ampliar o tempo de algumas atividades para uma hora e meia. Deu certo para as três primeiras. Nem tanto para Música: as crianças se mostravam mais dispersas depois da metade da aula. Ela, então, voltou a ser dividida em dois períodos de 45 minutos. "Como estamos no primeiro ano de experiência, investimos na observação, nos registros dos docentes e na reflexão coletiva para tomar as decisões. Com isso, vamos optando pelos caminhos que dão mais resultado na aprendizagem", explica a orientadora educacional Cris Junckes.
Adaptar espaços
A estruturação da grade de horários depende também da disponibilidade e da conveniência dos ambientes específicos para cada finalidade - e o aumento do tempo é diretamente proporcional à demanda por espaço. Há três alternativas para as instituições que mantêm turmas em dois ou três turnos e vão transformá-los em um só. A primeira delas é reduzir o número de turmas - o que depende de haver outras unidades da rede na vizinhança que possam absorver parte dos alunos. A segunda é atender a todas as turmas em ambos os turnos - e isso exige a ampliação do prédio e, mais uma vez, o apoio da Secretaria. Por último, é possível buscar novos locais e adaptar os já existentes - e é aí que as iniciativas têm de partir dos gestores.
Como vimos no começo da reportagem, a reorganização dos espaços não deve ser uma resposta improvisada à falta de estrutura. Qualquer instituição - antiga ou recém-reformada - vai precisar de adaptações para atender às necessidades específicas do integral. A EMEB Fábio Rodrigues Mendes, em Jundiaí, a 63 quilômetros de São Paulo, havia sido ampliada pouco antes de começar a atender seus alunos o dia todo. Mesmo ganhando cinco novas salas, dois espaços tiveram de ser adaptados para alocar todas atividades diversificadas em salas ambientes.
Um dos locais, previsto inicialmente para ser usado apenas para leitura, passou a receber também aulas de Produção de Texto. O outro, projetado para ser a secretaria, virou a sala de Inglês - e aquela acabou se mudando para um espaço ao lado. Em ambos, os alunos se sentam em mesas redondas - uma boa solução para lugares menores. A sala dos professores, que antes comportava toda a equipe, ficou pequena para os atuais 29 docentes e hoje ela serve apenas aos estudos e ao atendimento individual feito pela coordenação pedagógica. As reuniões de formação passaram a ser realizadas em uma sala de aula comum logo após as aulas.
Organizar a formação
Como os alunos passam o dia todo na escola, os professores - em um cenário ideal - também devem ter dedicação exclusiva. Dessa forma, fica mais fácil organizar os encontros de formação, que podem ser realizados logo após o horário letivo, pois, em geral, o turno integral se encerra um pouco mais cedo que o vespertino tradicional. Caso isso não seja possível, a melhor solução para promover a integração entre os conteúdos trabalhados nas diferentes disciplinas é definir horários na agenda para reunir periodicamente todos os professores de uma mesma série.
Esses momentos são muito importantes no caso de instituições que contam com outros agentes além do corpo docente contratado da Secretaria de Educação, como os especialistas conveniados e os universitários voluntários. Mesmo não fazendo parte do quadro fixo, eles precisam conhecer o projeto político-pedagógico e contribuir para a avaliação geral do aluno. Na prática, no entanto, é pouco comum que os acordos firmados com a rede prevejam horas pagas para a realização da formação dos responsáveis pelas atividades diversificadas. Nesse caso, o diretor pode designar um coordenador pedagógico para fazer a articulação com esses profissionais e voluntários.
Luciane Liberato Beheregaray tem exatamente essa função na EMEF Neusa Goulart Brizola, em Porto Alegre. Ela repassa o planejamento dos docentes da rede aos professores das oficinas em encontros após o almoço. Periodicamente, Luciane também faz a intermediação, nesse mesmo horário, entre os educadores da manhã e os da tarde para tratar de dificuldades pontuais de alunos. Assim, as oficinas de Letramento no contraturno, por exemplo, são planejadas considerando as necessidades de aprendizagem das turmas em Língua Portuguesa.
Garantir a merenda
A merenda é um fator que afeta bastante a rotina da equipe gestora. Primeiramente porque, em vez de se alimentar uma só vez na escola, o aluno passa a fazer pelo menos três refeições ao dia - e isso requer a seleção de um cardápio balanceado e variado por parte da direção, caso a Secretaria não designe um nutricionista especificamente para a função. Em segundo lugar, porque a cozinha precisa ser adaptada com fogões, freezers e geladeiras com maior capacidade e despensas mais espaçosas.
Além disso, a rotina de reuniões com as merendeiras ocupará mais tempo no cronograma da direção. Há dez anos, antes de oferecer o ensino integral, a EM Doutor Edson Giaciomini, em Apucarana, a 365 quilômetros de Curitiba, tinha apenas uma profissional que cuidava do lanche. Desde então, a equipe aumentou para quatro. Para orientar a chefe e as três assistentes, a diretora, Ederli Domingues, criou uma parede de recados para a troca de mensagens pontuais e estabeleceu uma periodicidade semanal de encontros de cerca de uma hora. "Antes resolvíamos essas questões de um jeito informal, em conversas esporádicas, feitas geralmente a cada 15 dias. Hoje precisamos agendar os encontros com antecedência e reservar horário na agenda", conta Ederli.
Nas reuniões, além do cardápio - elaborado por uma nutricionista da rede -, são discutidas questões relacionadas à higiene e à saúde. Mais do que supervisão, esses momentos têm uma intenção formativa.
As soluções para os problemas enfrentados por essas escolas podem servir de orientação para a sua caso ela esteja passando pelo processo de ampliação da jornada ou vá entrar nele. Ederli, que comandou essa transição primeiro como coordenadora pedagógica e, posteriormente, como diretora, conta que levou tempo para que professores, funcionários e pais se acostumassem à nova rotina, mas que o esforço valeu: "As taxas de evasão e reprovação, que há dez anos giravam em torno de 5%, hoje são zero. E isso se deve em parte ao ensino integral".
Quer saber mais?
BIBLIOGRAFIA
Caminhos da Educação Integral no Brasil: Direito a Outros Tempos e Espaços Educativos, Jaqueline Moll e colaboradores, 504 págs., Ed. Penso, tel. 0800-703-3444, 76 reais
CONTATOS
CEM São Luiz, tel. (48) 3247-2254
EM Doutor Edson Giaciomini, tel. (43) 3422-9953
EMEB Fábio Rodrigues Mendes, tel. (11) 4815-1171
EMEF Neusa Goulart Brizola, tel. (51) 3289-5978
EM Marechal Ribas Júnior, tel. (62) 3282-6865