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Marilza Regattieri: ''O Ensino Médio que está aí não faz sentido''

Pesquisadora da Unesco propõe para o Ensino Médio currículos mais dinâmicos e que ofereçam aos alunos uma formação integral

POR:
Verônica Fraidenraich
Marilza Regattieri. Foto: Carol de Góes
Marilza Regattieri

O cenário do Ensino Médio no Brasil é triste. Os resultados nas avaliações nacionais e internacionais são fracos, os índices de reprovação e evasão são altos, há queda no número de matrículas e faltam professores especialistas. O desânimo é tanto que a maior taxa de abandono ocorre logo no primeiro ano do segmento. Em 2010, 12,5% dos alunos recém-ingressos deixaram de ir à escola, contra 7,6% no 3º ano, de acordo com dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).

Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), essa etapa de conclusão da Educação Básica tem de garantir as aprendizagens necessárias ao desenvolvimento de conhecimentos e atitudes e práticas sociais e de trabalho. Isso significa que o jovem, ao se formar, poderá ingressar na vida adulta de forma digna seja qual for o caminho que quiser seguir. Mas não é o que ocorre.

Na tentativa de mudar esse quadro, a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) desenvolveu, em parceria com o Ministério da Educação (MEC), dois modelos de currículos: os chamados protótipos de Ensino Médio de formação geral e o Integrado. O objetivo é estimular o debate e ajudar os sistemas de ensino a construir propostas curriculares e revisar o projeto político-pedagógico.

A economista Marilza Regattieri, que cuida da área de Ensino Médio e Educação profissional da Unesco há 13 anos e participou do estudo - cujo relatório completo será publicado neste semestre -, diz que é preciso garantir à instituição a escolha de um modelo segundo a realidade e o perfil de seus alunos. "Ao verem considerados os seus anseios, eles passam a ter outra relação com a escola. Ficam mais interessados", diz Marilza. Leia a seguir a entrevista que ela concedeu a GESTÃO ESCOLAR.

Qual o principal gargalo do Ensino Médio hoje no Brasil?
MARILZA REGATTIERI
É o currículo. Há uma diversidade muito grande em relação a condições socioeconômicas, sonhos, expectativas e visões da juventude sobre o mundo. Apesar disso, o que se observa é uma escola única, que pouco diferencia as suas formas de atendimento e organização do Ensino Médio. A discussão, portanto, precisa se centrar no currículo, em aprendizagens que garantam ao cidadão, ao sair da escola, o preparo para continuar os estudos e evoluir enquanto pessoa e profissionalmente. Assim, ele estaria apto para desenvolver habilidades que qualquer tipo de trabalho demanda, na escrita, na fala, na construção do raciocínio lógico e no domínio de uma Língua Estrangeira. Embora isso esteja previsto na LDB, não chega a ser efetivado.

Qual a sua avaliação sobre as políticas públicas vigentes para o segmento?
MARILZA
O Ensino Médio que está aí não faz sentido. Houve o amadurecimento na oferta e na gestão das políticas do setor - a exemplo dos catálogos nacionais de cursos técnicos e de tecnologia e de programas como o Ensino Médio Inovador -, mas faltam medidas que acompanhem o dinamismo que a comunidade escolar e o mercado de trabalho exigem. A integração curricular entre Ensino Médio e Educação profissional ainda é incipiente. É preciso uma proposta pedagógica que sistematize isso melhor.

Como funciona o protótipo de Ensino Médio de formação geral, criado pela Unesco em parceria com o MEC?
MARILZA
Ele segue o modelo-padrão das escolas públicas brasileiras: três anos de duração e carga horária anual de 800 horas. O diferencial, porém, é que o currículo tem um núcleo de preparação básica para o trabalho e demais práticas sociais, que ocupa 25% do tempo letivo (200 horas anuais) e consiste num trabalho interdisciplinar que envolve todos os professores e estudantes de uma mesma série. Esse grupo irá desenvolver um projeto focado em atividades de pesquisa e trabalho tendo, para cada ano do Ensino Médio, um tema norteador - no primeiro, escola e moradia como ambientes de aprendizagem, no segundo, ação comunitária, e no terceiro, vida e sociedade. Essa formação curricular considera as áreas de conhecimento - Linguagens, Códigos e suas Tecnologias, Matemática e suas Tecnologias, Ciências da Natureza e suas Tecnologias, Ciências Humanas e suas Tecnologias - e a matriz de competências e habilidades do novo Exame Nacional de Ensino Médio (Enem). Leva em conta ainda o que chamamos de dimensões articuladoras do projeto - Ciência, Cultura, Tecnologia e Trabalho.

Que tipo de projeto pode ser trabalhado para atender a essa proposta?
MARILZA
Pode ser um estudo sobre o consumo responsável de energia elétrica no município, por exemplo. As ações realizadas, como visitas de campo à casa dos moradores e entrevistas via e-mail a órgãos públicos, poderão tratar de assuntos tão diversos quanto termodinâmica e Língua Portuguesa. E ainda, para incluir as dimensões citadas, o projeto pode abordar aspectos científicos, como a montagem de um painel de energia solar, ou culturais, como os hábitos da população quanto ao tempo do banho e ao uso de água quente. O fundamental é que os jovens sejam protagonistas desse processo e possam, com base nele, experimentar futuros campos de atuação profissional.

Quais as características do protótipo do Ensino Médio Integrado?
MARILZA
Ele equivale ao curso de formação geral, seguindo a mesma organização curricular, isto é, também é composto do Núcleo de preparação para o trabalho, as áreas de conhecimento, os projetos e as dimensões articuladoras. Entretanto, tem duração de quatro anos e os dois últimos priorizam a Educação profissional. Nesse período, as atividades de pesquisa e trabalho do Núcleo passam a ocupar 50% do currículo e voltam-se, principalmente, para o desenvolvimento de aprendizagens vinculadas à habilitação técnica escolhida.

Que tipo de formação se pretende dar com esses currículos?
MARILZA
O objetivo é contribuir para que os sistemas de ensino cumpram o que a lei estabelece como finalidades para esse nível educacional. Ao terminar o Ensino Médio, portanto, os jovens devem adquirir uma preparação básica para o trabalho e outras práticas sociais. Isso inclui a convivência familiar, a participação política e a capacidade de dar continuidade aos estudos, de desenvolver a autonomia intelectual e o pensamento crítico e ainda compreender os fundamentos científico-tecnológicos dos processos produtivos, relacionando a teoria com a prática dos conteúdos estudados.

Que outras vantagens esses protótipos podem trazer aos jovens?
MARILZA
Ao verem considerados os seus anseios e ganharem espaço para participar do processo de ensino e aprendizagem, esses estudantes passam a ter outra relação com a escola, ficam mais interessados. Além do mais, esses modelos possibilitam uma escolha profissional mais tardia e amadurecida, em que o jovem poderá confrontar seus interesses pessoais com o campo profissional e as possibilidades e os requisitos de emprego ou empreendedorismo.

Qual a viabilidade de implantação dessas propostas?
MARILZA
Uma das tratativas do nosso trabalho era identificar elementos no currículo que mudassem o mínimo possível as escolas - de um lado, cumprindo o que prevê a LDB e, de outro, viabilizando ações dentro das condições das unidades de ensino no Brasil. Ficou claro, porém, que isso não é tão simples, visto que o Ensino Médio requer outra lógica de funcionamento da instituição e das Secretarias de Educação e com relação à formação docente. É preciso, portanto, investir nessas áreas para viabilizar a implantação dos protótipos.

Que orientação é dada quanto à formação da equipe docente?
MARILZA
A maior parte das escolas, infelizmente, não tem reservado um tempo para que os professores planejem as aulas nem para os horários de estudo coletivo. A Unesco defende que o processo de formação continuada seja feito em serviço e o protótipo traz esse princípio. Pensamos em estratégias que pudessem levar os professores, ao longo do processo, a aprender a fazer fazendo. Para tanto, durante a introdução dos protótipos, eles irão usar as reuniões coletivas para analisar e planejar o currículo, revisar o projeto político-pedagógico (PPP), estudar as metodologias de operacionalização dos instrumentos e manter um processo de avaliação contínua, que ajudará na programação do ano letivo seguinte.

Qual o papel das redes de ensino na implantação desses sistemas?
MARILZA
As escolas se sentem muito sozinhas e tendem a ter medo e resistir sempre que surge uma nova experiência. O diálogo entre as Secretarias de Educação e as escolas precisa ser permanente. Cabe aos sistemas de ensino garantir as condições e dar apoio para que a instituição atenda aos objetivos de aprendizagem. E não estou falando de dinheiro. Muitas vezes, são outros elementos de organização da escola, de interlocução com as redes de ensino, que podem viabilizar uma nova proposta.

Qual a relação entre os protótipos e o projeto político-pedagógico?
MARILZA
Os protótipos são, antes de mais nada, um instrumento de revisão do PPP e se baseiam no pressuposto de que a escola precisa ter clareza sobre a formação que quer dar a seus alunos. Muitas vezes, o PPP não é feito pela escola ou trata apenas de cumprir um protocolo, sem revelar uma concepção viva e dinâmica dos anseios daquela comunidade. O que chega ao aluno, logo, é uma colcha de retalhos. Só que o jovem é sonhador, mas também é muito imediatista e quer resultados concretos. "Por que estudo isso?" é uma pergunta que ele faz com frequência. A escola tem de ter uma proposta pedagógica baseada no conhecimento de seu entorno, dos dados socioeconômicos e da diversidade da juventude, que, aliás, quer estar longe da escola - 50% dos adolescentes abandonam os estudos ao longo do Ensino Médio. Entender o porquê disso é fundamental.

Considerando que os protótipos estão em consonância com as Diretrizes Curriculares Nacionais do Ensino Médio, recentemente aprovadas, o que dizer das críticas de especialistas que afirmam que o dualismo formação acadêmica x formação profissionalizante ainda existe?
MARILZA
A questão não é o que está posto na lei, mas a forma como isso ocorre dentro da escola, a que formação os alunos têm acesso. Esse dualismo é histórico e o nosso objetivo foi justamente evitar essa divisão, garantindo uma formação integral ao estudante. Em outras palavras, procuramos chegar o mais próximo possível do que está previsto na legislação e, ao mesmo tempo, assegurar que a escola possa escolher um modelo de acordo com a realidade e o perfil de seus alunos e não o inverso. O ideal é pensar primeiro na proposta pedagógica para depois definir o quadro de professores, os materiais e a infraestrutura necessária.