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Maria de Nazaré Corrêa da Silva conta como está erradicando o analfabetismo no Amazonas

Confira na entrevista com a professora da Universidade Estadual do Amazonas (UEA) de que maneira a formação de professores e o combate à evasão têm elevado o número de adultos alfabetizados no estado

POR:
Paola Gentile
Foto: Fábio Nutti
MARIA DE NAZARÉ CORRÊA DA SILVA

Em 2003, 60% dos habitantes do município de Itamarati, distante de Manaus 985 quilômetros por ar e 1.930 por vários rios da região, não sabiam ler nem escrever. Sete anos depois, a cidade recebe o título de Município Livre do Analfabetismo, conferido pelo Ministério da Educação aos que têm menos de 4% de analfabetos. Itamarati, assim como as outras 61 cidades do estado do Amazonas, aderiu ao Programa de Letramento Reescrevendo o Futuro, da Universidade Estadual do Amazonas (UEA), em parceria com a Secretaria do Estado de Educação do Amazonas.

Idealizado e coordenado por Maria de Nazaré Corrêa da Silva, professora da UEA, o Reescrevendo deve encerrar seus trabalhos no início do próximo ano. Até agora, além dos 23 municípios que registram 96% da população alfabetizada, outros 18 já diminuíram essa taxa em 50% e o restante está no caminho. Ao custo de 8 milhões de reais por ano, dividido entre os governos federal, estadual, municipais e a universidade, o programa de letramento ainda está presente em 39 cidades, onde se formarão as últimas turmas. "Os bons resultados se devem à formação de professores para trabalhar com esse público e a ações para combater a evasão", afirma a coordenadora. A seguir, Maria de Nazaré conta detalhes do programa, que já alfabetizou mais de 190 mil alunos, mesmo com as enormes distâncias a enfrentar - por terra, água e ar.

Por que é tão difícil acabar com o analfabetismo
no Brasil?

MARIA DE NAZARÉ CORRÊA DA SILVA
O modelo de desenvolvimento econômico do país, da colônia à república, nunca priorizou uma Educação igualitária para a sociedade e a democratização brasileira ainda não deu conta de diminuir as desigualdades sociais. Pensando mais recentemente, a exclusão da Educaçao de Jovens e Adultos (EJA), por dez anos, do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) também é um fator agravante. Ainda temos 63 milhões de brasileiros adultos à espera de concluir o Ensino Fundamental e merecendo espaços e horários dignos para sua formação.

Uma das principais barreiras no combate ao analfabetismo no Brasil é a evasão dos alunos de EJA, que está em cerca de 32%. O Reescrevendo o Futuro registra 7%. Como isso é possível?
NAZARÉ
Muitos fatores contribuem para que o adulto abandone a escola: a falta de professores preparados para trabalhar nesse segmento, o material didático inadequado - geralmente o mesmo usado na Educação de crianças - e a falta de uma organização apropriada para atender a esse público. Atraímos os alunos com uma bolsa de 180 reais e criamos condições para evitar as faltas e a evasão. Instituímos aulas aos sábados, em vez de usar o período noturno, pois nosso público é formado basicamente por pescadores e trabalhadores rurais, que acordam muito cedo e à noite estão cansados. Oferecemos duas merendas e montamos turmas de no máximo 30 estudantes, com dois professores com formação específica em sala ao mesmo tempo, para poder dar atenção a todos.

A bolsa é o fator que mais ajuda a manter os alunos em sala de aula?
NAZARÉ
Certamente ela funciona como um grande chamariz para muitos, que de início vêm em busca do dinheiro. Contudo, com o tempo e os resultados positivos, a maioria percebe que o ganho com a alfabetização é muito maior. Guajará, por exemplo, teve mil inscritos logo no primeiro ano. O programa foi anunciado em rádios e em carros de som, que percorreram a cidade. Os professores iam de casa em casa efetuar a matrícula. Em três anos, o analfabetismo caiu de 51% para menos de 4% na cidade.

Nunca houve o receio de que alguns estudantes recebessem a bolsa e não aparecessem mais?
NAZARÉ
O valor não é disponibilizado de uma vez. O programa de letramento tem duração de seis meses e, por isso, pagamos parcelas mensais de 30 reais - tanto que ficamos conhecidos como o "programa dos 30". A primeira é liberada somente quando o aluno começa a assinar o nome, e a última, ao conseguir elaborar um texto simples, como um bilhete, uma carta ou uma receita. Ambas as avaliações, a inicial e a final, são bem criteriosas e rigorosas.

Como são recrutados os professores alfabetizadores?
NAZARÉ
A seleção inicial foi feita entre os alunos do Curso Normal Superior da UEA, que está presente em diversos municípios, priorizando os que frequentam a disciplina Alfabetização de Jovens e Adultos. Eles tinham de ter experiência em EJA e residir no município. Onde não atingimos o número suficiente de docentes, convidamos os professores das redes municipal e estadual. Os alfabetizadores ganham 250 reais por mês e os que têm alunos com deficiência na sala recebem um pouco mais.

É preciso dar formação específica?
NAZARÉ
Sim. Em cada cidade, destacamos um pedagogo com pós-graduação para ser o coordenador e supervisor, que também recebe uma bolsa e tem de ir até Manaus uma vez por mês para receber formação - a inicial tem 60 horas e realizamos mais quatro encontros de 20 horas, cada um. Depois, ele forma a equipe do município que vai atuar em sala de aula. No total, capacitamos cerca de 3 mil professores. Muitos deles disseram que foi nos encontros do Reescrevendo que ouviram pela primeira vez falar em hipóteses de escrita e que esse conhecimento os ajudou a alfabetizar as crianças nos primeiros anos do Ensino Fundamental. Em algumas cidades, esses professores são convidados pela Secretaria de Educação a dar a formação que recebem aos colegas da rede. Outros são chamados para organizar a EJA onde não existe essa modalidade e, assim, fazer com que a população leve adiante os estudos.

Qual o papel de cada esfera do governo e da universidade no programa?
NAZARÉ
O governo federal é responsável pelo pagamento dos professores e dos formadores. A Secretaria de Estado da Educação cede as escolas da rede para as aulas e cobre os gastos com a merenda e o salário das merendeiras. As prefeituras, por sua vez, são responsáveis pela logística de transporte de alunos e professores, providenciando peruas e barcos onde é preciso, e efetuam a compra dos alimentos na comunidade local. Já a UEA paga a bolsa dos alunos, faz a formação de coordenadores e professores e supervisiona e acompanha o programa.

Quais as dificuldades para coordenar tantas instâncias políticas?
NAZARÉ
O governo do Amazonas pediu a todas as universidades do estado para desenvolver um projeto de combate ao analfabetismo para apresentar ao Ministério da Educação (MEC). Portanto, já havia vontade política de executar o trabalho. Nossa proposta foi escolhida e a apresentamos aos prefeitos. Alguns tentaram nos convencer de que na cidade não havia analfabetos, indo contra as estatísticas oficiais. Mas tínhamos os números e não havia como escapar: ou eles aderiam ao Reescrevendo, ou apresentavam um plano próprio, com metas a ser cumpridas e prazos. A adesão ao nosso programa foi de 100%. Ele dura seis meses e o convênio com as prefeituras é renovado enquanto houver analfabetos na cidade interessados em aprender a ler e a escrever. Este ano ainda temos turmas em 39 municípios.

Que tipo de material didático a universidade elaborou para atender os alunos
jovens e adultos?

NAZARÉ
Não trabalhamos com cartilha nem com folhas fotocopiadas ou mimeografadas. Essa diretriz é dada logo no primeiro encontro de formação. O kit do aluno é formado por lápis, apontador, caderno, caneta, papel ofício, lápis de cor, um jogo de tinta guache e uma camiseta do projeto. Já o do professor recebe vários tipos de papel e canetas para fazer o registro do aprendizado em cartazes. A alfabetização é feita com palavras-chave tiradas do vocabulário usado pelo aluno e pela comunidade.

A população indígena também é atendida pelo Reescrevendo?
NAZARÉ
Sim. Até agora foram 19 mil indígenas de 34 etnias, em 21 municípios, alfabetizados em Língua Portuguesa e também na própria língua.

A disciplina de Matemática faz parte do currículo?
NAZARÉ
Orientamos os professores a introduzir em sala de aula noções do sistema numérico e de geometria e desenvolver atividades que envolvem dinheiro e cálculos de compra e venda de materiais manipulados no cotidiano dos estudantes, como açaí, peixes, canoas etc. Mas o foco é mesmo o letramento.

Como coordenar o trabalho em 62 municípios num estado em que as distâncias
são enormes?

NAZARÉ
Essa é uma das nossas maiores dificuldades. No início, tínhamos medo de não conseguir monitorar os resultados e de que o atraso na chegada do material desmotivasse alunos e professores. Afinal, temos municípios em que só se chega com a ajuda de caminhões do Exército ou em avião fretado. Aliás, depois da bolsa dos alunos, nosso maior gasto é com transporte. São cerca de 100 mil reais por mês. Por isso, investimos na organização de uma rede de monitoramento e avaliação que, na minha opinião, funciona muito bem: há um coordenador da UEA que cuida de 15 municípios e os visita periodicamente. Os professores preenchem relatórios mensais para a análise dos supervisores, que, por sua vez, conferem esse registro e a produção dos alunos, nos enviando relatos e socializando as dúvidas nos encontros de formação mensais. Dessa forma, qualquer problema na aprendizagem é rapidamente detectado e as modificações necessárias podem ser implementadas em tempo hábil para ninguém ficar para trás.

Com tanta gente envolvida, certamente foi preciso implantar uma boa gestão de pessoas e processos.
NAZARÉ
Houve muito aprendizado em várias áreas. Uns professores chegaram a enfrentar a greve de alunos quando a bolsa não chegou na data estipulada - e isso, no início, aconteceu algumas vezes. Tivemos de orientar os educadores a fazer com eles um trabalho de convencimento, lembrando a importância de estudar. Já os coordenadores tiveram de assumir uma postura de formadores dos colegas e, como supervisores, muitos precisaram dispensar os que não estavam motivados ou não entenderam nossa proposta e maneira de trabalhar.

O que representa a redução do analfabetismo para o Amazonas?
NAZARÉ
O modelo de desenvolvimento para a sociedade que vive no interior do nosso estado passa, necessariamente, pela elevação da escolaridade da população. A alfabetização com certeza é um dos fatores que mais corroboram para a superação das dificuldades de quem vive abaixo da linha da pobreza, bem como para a diminuição da mortalidade infantil e de outros indicadores sociais críticos. Não é possível ter uma sociedade desenvolvida ou em desenvolvimento com contrastes sociais desumanos.

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