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Educar em meio à violência

Gestoras de escolas localizadas em regiões dominadas pelo tráfico contam como conseguem preservar a escola como espaço da aprendizagem

POR:
Gustavo Heidrich

O cotidiano de escolas que estão em áreas de risco por causa da grande incidência de tráfico de drogas e outros crimes é bastante peculiar. Vez ou outra, é preciso interromper as atividades quando há operação policial na vizinhança - às vezes, duram algumas horas. Às vezes, algumas semanas. A maioria dos alunos convive com cenas que não são comuns em outros bairros - como a presença de "olheiros" armados nas esquinas, tiroteios e até assassinatos -, o que faz com que o tema violência tenha de estar sempre presente na sala de aula e nas reuniões pedagógicas ou com a comunidade.

Dirigir uma unidade escolar inserida nessa realidade não é nada simples. Os problemas são vários e das mais diversas naturezas. Nesta reportagem, vamos tratar de um deles em especial: como conviver com a violência e o crime sem ser conivente com eles, garantindo que a escola seja um espaço de construção de novas possibilidades para os alunos.

NOVA ESCOLA GESTÃO ESCOLAR visitou três escolas municipais no Rio de Janeiro para saber como os gestores lidam com essa questão. A Rubens Berardo e a Professor Affonso Várzea ficam no Complexo do Alemão, conjunto de 13 favelas com cerca de 300 mil habitantes, que também é conhecido como a Faixa de Gaza carioca, em referência ao território em que ocorrem frequentes conflitos entre israelenses e palestinos. Já a Mestre Cartola está dentro da favela de Vigário Geral, bairro que ficou famoso em 1993, quando a polícia invadiu o local para vingar o assassinato de quatro membros da corporação por traficantes e causou a morte de 21 moradores.

As unidades foram indicadas pela Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro por terem um trabalho educativo e comunitário de destaque. As diretoras têm histórias diferentes para contar. Contudo, existem pontos em comum na trajetória de vida delas: todas aceitaram ser professoras em locais dos quais a maioria quer distância, permaneceram na escola até chegar ao cargo que estão atualmente, estão há vários anos na direção, conhecem o entorno e - principalmente - acreditam que a escola tem de ser a principal referência para a comunidade.

Em locais dominados pelo tráfico de drogas, existem regras criadas para proteger a ação criminosa e, nas ruas, são constantes as demonstrações de poder. "Muitas vezes, as crianças reproduzem esses comportamentos, demonstrando que aprendem rapidamente a lei do mais forte", diz Jorge da Silva, ex-coronel da Polícia Militar e professor da Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj). 

Marci Dias Pires, diretora da Mestre Cartola, viveu os reflexos da chacina de Vigário Geral como professora e enfrentou os problemas de uma comunidade dividida e dominada por diferentes facções e dos efeitos que isso causava internamente. Em várias ocasiões, presenciou alunos brincando de traficante e polícia no pátio, chamando pedaços de pau de AK-47 (modelo de fuzil de guerra usado pelas gangues). "Na maioria das vezes, a escola representa a única janela que os alunos têm para um mundo diferente do que está à sua volta. Não podemos nunca desistir de nenhum deles", afirma (leia mais na página 4).

Criação de bons exemplos como uma alternativa ao entorno

O que essas escolas de áreas de risco tentam fazer é reduzir a influência negativa do meio. Uma das maneiras usadas pelas diretoras é valorizar a ética e os princípios relacionados ao estudo e ao trabalho, apresentando bons exemplos. Antes de mais nada, essas referências têm de estar dentro da própria escola. Afinal, o respeito nas relações pessoais é uma lição que se ensina e se aprende diariamente. "A forma de receber os estudantes, planejar e conduzir as atividades e o próprio comportamento dos adultos transmitem valores. Os alunos certamente se lembrarão de gestos e atitudes de consideração e solidariedade que presenciaram e os usarão como um modelo durante a vida", destaca Tânia Maria Rechia, professora da Universidade Estadual do Oeste do Paraná (Unioeste) e pesquisadora em violência escolar.

Eliane Saback, há 24 anos à frente da EM Professor Affonso Várzea, sempre conversa com as crianças quando vê algum tipo de agressão entre elas ou em relação à estrutura da escola: "Faço com que reflitam sobre os atos praticados e encontrem soluções para os danos causados". Ela também faz questão de levar ex-alunos que escolheram uma carreira e são bem-sucedidos, ganharam prêmios ou cursam faculdade para falar com os mais jovens (leia mais na página 5).

Na tarefa de criar referências para os estudantes, é importante que o diretor conte com o apoio da equipe - o que nem sempre é fácil. "É preciso ter um tipo de autoridade que só se conquista com permanência e dedicação", afirma Norma Sueli Ferreira Borges, diretora da EM Rubens Berardo. Há 36 anos na escola, dos quais 15 como gestora, ela aprendeu a envolver todos na busca de soluções para os problemas do dia a dia e a compartilhar as conquistas (leia mais na página 6).

Bom relacionamento, mas sem negociação

O propósito de ser uma referência positiva para os jovens deve estar claro também para a comunidade. Por isso, é fundamental que o gestor tenha um bom relacionamento com as famílias e os vizinhos da escola e que os acontecimentos sejam sempre discutidos. "O silêncio pode transmitir a mensagem equivocada de que aquela situação é normal e aceitável", diz Luiz Eduardo Soares, sociólogo e coatuor do livro Elite da Tropa, que deu origem ao filme Tropa de Elite.

Isso não quer dizer, de forma alguma, fazer acordo ou qualquer tipo de negociação com traficantes para preservar a segurança da escola. Os especialistas são unânimes: não é função dos educadores negociar nem entrar em conflito, para não colocar em risco a própria vida e a de quem transita pela instituição. "É o estado que deve cuidar da segurança pública. A função da escola é ensinar", reforça Mecira Rosa Ferreira, pesquisadora em violência escolar e doutora em Serviço Social pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp), campus de Franca, a 400 quilômetros de São Paulo.

Ensinar, portanto, é a tônica do trabalho dos gestores que estão à frente dessas escolas. Ensinar valores junto com os conteúdos escolares tradicionais. E ensinar ética e respeito no trato com os jovens e com a comunidade junto com novos caminhos e possibilidades para eles. "Episódios de violência e indisciplina, em maior ou menor grau, sempre estarão presentes. Afinal, não existe uma escola sem problemas e paz não significa a ausência de conflitos. Isso nos obriga a ter consciência da nossa importância como referências", conclui Tânia Maria.

Marci Dias Pires, diretora da EM Mestre Cartola, em Vigário Geral

Foto: Gilvan Barreto

"Quando me formei em Pedagogia, não tinha ideia de como era a realidade das escolas localizadas em favelas. Fui trabalhar na Mestre Cartola e fiquei chocada com a falta de infraestrutura do bairro. Mas não arredei pé, pois ali havia um trabalho importante a fazer. Quem está aqui há mais tempo passou por episódios dramáticos. O pior deles foi a chacina de Vigário Geral, em que 21 pessoas foram assassinadas, entre elas o marido de uma merendeira e o irmão de uma funcionária. Na época, eu era professora e me lembro de que foi preciso muita conversa com a equipe e os alunos, durante semanas, para a vida voltar ao normal. A comunidade era dividida em duas - inclusive fisicamente, por uma passarela -, cada uma dominada por uma facção criminosa. Os moradores eram proibidos pelos líderes de conversar uns com os outros. As crianças não podiam ir à casa de colegas que moravam do lado oposto. Na hora do recreio, brincavam de traficante e polícia, usando pedaços de pau como fuzis AK-47. Nossa equipe conviveu com isso durante 20 anos, mas procurou anular o efeito do problema pelo menos dentro da escola. Nunca deixamos de chamar as famílias para conversar sobre o desempenho dos filhos e opinar sobre assuntos importantes. Felizmente, isso acabou e hoje conversamos abertamente com os pais para tentar não perder nenhuma criança para o tráfico. Quando encontro um ex-aluno que se tornou olheiro ou 'soldado', pergunto por que largou a escola e vou até a casa dele conversar com os pais, procurando trazê-lo de volta. Meu mote é que a criança precisa ter a possibilidade de aprender e de sonhar. Não desisto de ninguém."

Eliane Saback, diretora da EM Professor Affonso Várzea, no
Complexo do Alemão

Foto: Gilvan Barreto

"A escola em que trabalho há 24 anos fica no segundo maior conglomerado de favelas do Brasil, o Complexo do Alemão. O lugar é bastante conhecido, pois sempre aparece nos jornais como palco de cenas de violência. A maioria dos alunos presencia tiroteios e mortes, e alguns até dormem durante a aula quando isso acontece de madrugada e eles passam a noite em claro. Minha maior preocupação é atendê-los bem e criar referenciais positivos. Em um domingo de junho, por exemplo, dia de jogo do Brasil na Copa, fui com um grupo de alunos e pais ao Teatro Municipal ouvir música clássica. Para muitos, era a primeira vez num teatro. Já os levei para conhecer o planetário e diversos museus. Acredito que o fato de frequentarem espaços diferentes e conhecer as profissões pode ajudá-los a vislumbrar outras possibilidades para a vida deles. Também faço questão de convidar para dar palestra na escola todo aluno e ex-aluno que se destacam. Foi assim com uma garota vencedora do concurso de redação da Academia de Letras do Rio, outro campeão estudantil de xadrez e um que escolheu a carreira de bombeiro depois de formado. Para mostrar nossos propósitos às famílias e à comunidade, apostamos na formação de conselhos. O da escola reúne membros da comunidade para decidir sobre o uso das verbas e os projetos institucionais. Temos outro formado por representantes de familiares de todas as turmas - e cuja função é dar sugestões para melhorar o ensino. E o de alunos, que decide sobre as regras internas e o código de conduta. Todas essas formas de contato e diálogo fazem com que o trabalho da equipe de gestão seja respeitado."

Norma Borges, diretora da EM Rubens Berardo, no Complexo do Alemão

Foto: Gilvan Barreto

"Comecei a trabalhar na EM Rubens Berardo, no Complexo do Alemão, com 19 anos, como professora. Estou aqui há 36 anos e aprendi que a escola é uma tábua de salvação para muita gente. Já recebi jovens em regime de liberdade assistida e parentes de traficantes que se gabam dessa situação. Tive inclusive alunos que morreram em perseguição com a polícia ou assassinados pelo tráfico. Impossível não se sentir responsável, mas não dá para ficar com medo e virar refém. Por isso, aprendi a agir preventivamente. É essencial ter um tipo de autoridade que só se consegue com permanência e dedicação. Investimos num trabalho de equipe intenso, estabelecendo metas para cada turma e investindo na formação dos professores. Quando atingimos nossos objetivos, lembro como cada um contribuiu para o resultado. Mesmo enfrentando problemas, vibramos a cada conquista e conseguimos o comprometimento de todos. Além disso, vários alunos precisam de acompanhamento individual. Tenho um deles que já foi expulso de várias escolas. Sempre que converso com ele, ressalto que não quero perdê-lo. Sugeri que ele ficasse mais na escola, colaborando em atividades no contraturno. Nesses momentos, aproveito para conversar sobre as atitudes que presenciamos e sonhos para o futuro. Acho que ações como essa ajudam a manter na escola quem precisa de ajuda. Já tive estudantes que ingressaram no Colégio Pedro II - o mais tradicional do Rio -, outros que fizeram carreira militar e até um que se tornou bailarino. É muito gratificante vê-los crescer ao nosso lado."

Quer saber mais?

CONTATOS
EM Mestre Cartola, tel. (21) 3455-4636
EM Professor Affonso Várzea, tel. (21) 3885-4555
EM Rubens Berardo, tel. (21) 3885-5667
Luiz Eduardo Soares
Tânia Maria Rechia

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