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Maria Helena Guimarães: "É preciso cultivar o respeito no ambiente escolar"

Para a educadora e cientista social, normas e rituais melhoram a relação com a comunidade e podem ajudar a recuperar o valor institucional da escola

POR:
Cristina Nabuco
Foto: Marina Piedade
MARIA HELENA GUIMARÃES
Foto: Marina Piedade

Rever o projeto pedagógico, buscar novas tecnologias educacionais, valorizar o professor. Tudo isso é fundamental para que a escola pública volte a ser uma instituição valorizada pela sociedade. Porém, para a cientista social Maria Helena Guimarães de Castro, ex-secretária de Educação do Estado de São Paulo e do Distrito Federal, falta acrescentar um item a essa lista: o resgate de normas e rituais capazes de organizar a vida escolar e restabelecer o vínculo da instituição com a comunidade. Aos procedimentos que vão ajudar nessa revitalização da instituição de ensino - e podem, inclusive, influenciar a construção ou a consolidação da identidade da escola -, Maria Helena chama de etiqueta, fazendo uma referência ao conjunto de regras de conduta e de tratamento que é seguido em ocasiões formais e que revelam, sobretudo, o respeito às pessoas envolvidas.

Aos 62 anos, casada, três filhos e quatro netos, Maria Helena hoje presta consultoria para órgãos públicos e instituições privadas, além de atuar como pesquisadora do Núcleo de Políticas Públicas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), no interior paulista. Ela falou a NOVA ESCOLA GESTÃO ESCOLAR sobre como o resgate dessa etiqueta pode favorecer o ambiente de civilidade e contribuir para melhorar os resultados alcançados nas avaliações externas.

Enquanto esteve na Secretaria de Educação de São Paulo, houve um momento em que a senhora afirmou ter percebido que a escola havia perdido a etiqueta? O que isso significa?

MARIA HELENA GUIMARÃES A escola pública passou por um processo gradual de desvalorização perante a sociedade, o que se reflete, inclusive, em situações de agressividade entre professores e alunos. Para recuperar a importância, a escola precisa se apresentar como uma instituição essencial no desenvolvimento de ações para a construção de uma sociedade melhor e mais justa. Nesse sentido, considero crucial resgatar rituais, que nada mais são do que uma sequência de atos simbólicos importantes para marcar a instituição - e é isso que estou chamando de etiqueta. Acredito que é necessário criar e usar normas de convivência que sejam conhecidas e respeitadas por funcionários, alunos e pais. Afinal, a existência de boas leis e de respeito às regras do jogo faz parte da democracia.

É possível citar alguns exemplos de bons rituais escolares?
MARIA HELENA São atitudes aparentemente rotineiras, mas de extrema importância para o ambiente escolar. Algumas delas são realmente bem simples. Por exemplo, quando, no início do ano letivo, o diretor prepara a recepção aos professores, abre as atividades com um discurso e estabelece uma interação com a equipe. Com isso, os docentes começam a sentir a boa integração do grupo e a maneira como o projeto pedagógico é compartilhado e ver que existe mediação entre todos. Também é um resgate do ritual escolar comemorar os momentos de formatura das turmas e organizar cerimônias em homenagem aos professores que se aposentam ou se destacaram em algum projeto. Com isso, não quero dizer que o gestor tem de ser centralizador. Ao contrário, eu insisto no caráter participativo da atuação, que ajuda a criar um bom ambiente de trabalho. Afinal, todas as pesquisas de avaliação no Brasil e no exterior e o próprio Programa Internacional de Avaliação de Alunos - o Pisa - mostram que o clima da escola conta muito na aprendizagem.

E com relação aos alunos, como seriam esses rituais?
MARIA HELENA Organizar também uma recepção para eles no primeiro dia de aula certamente é um bom começo. Hoje, muitas instituições simplesmente abrem as portas e indicam à criança ou ao jovem a sala em que vai estudar. Às vezes, o aluno se apresenta apenas ao professor e só depois de muito tempo ele vai conhecer o diretor, quando cruza com ele eventualmente pelos corredores. Na verdade, os gestores deveriam conhecer todos os alunos e suas famílias, saber seus nomes e incentivar os professores e funcionários a fazer o mesmo.

Em que momento esses rituais se perderam no cotidiano escolar?
MARIA HELENA A escola sofreu um processo de desorganização com a expansão acelerada do ensino, especialmente nos últimos 15 ou 20 anos. As Secretarias de Educação em todo o país foram obrigadas a fazer concursos e ampliar o número de unidades com muita rapidez. Infelizmente, não houve tempo para refletir sobre as características institucionais das escolas, sobre o preparo e a formação que se esperava dos profissionais contratados. Esse quadro provocou uma desordem interna, que foi agravada pela crise de valores - um problema que, aliás, é da sociedade como um todo e não apenas da escola. Houve também a reforma da Previdência, em 1996, que resultou na aposentadoria de milhares de bons docentes, temerosos de perder direitos. Com isso, foram desfeitas equipes que eram unidas, permanentes e vinculadas à comunidade. Temos, agora, de trabalhar para reconstruir esses laços. 

Como recuperar essa relação?
MARIA HELENA Além de melhorar os programas pedagógicos e investir em novas tecnologias educacionais, é preciso cultivar o respeito institucional perante a comunidade. No passado, o sistema tradicional atendia uma elite e tinha seus rituais, que garantiam o respeito da sociedade pela instituição escolar. A escola de hoje, que é formatada para receber a todos, também precisa deles.

Como a interação entre a escola e a comunidade se reflete na qualidade da Educação oferecida?
MARIA HELENA A coesão social e a Educação, tema bastante discutido no início dos anos 1990, foi retomado por Robert Putnam, professor da Universidade Harvard, em uma reunião de ministros da Educação de países integrantes da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) em Dublin, na Irlanda, em 2004. Putnam mostrou pesquisas sobre a relação entre os resultados do Pisa e de outras avaliações externas com graus elevados de coesão social e respeito à escola. É esse ponto que quero destacar ao me referir à etiqueta da escola. Não se trata de uma visão tradicionalista sobre a relação entre alunos e professores. O mesmo tema foi abordado no livro L’École ou la Guerre Civile, do professor universitário Philippe Meirieu e do jornalista Marc Guiraud, publicado em 1997, na França. A obra defende a necessidade de um novo contrato social. Para salvar a escola como instituição, os autores afirmam que é preciso voltar à questão dos valores e das regras a ser respeitadas, além de retomar a identidade do professor - que foi ameaçada, causando a perda da convicção sobre a importância desse profissional.

Esse resgate ajudaria a melhorar a indisciplina nas escolas?
MARIA HELENA Todos os depoimentos sobre violência batem nas mesmas teclas: "Chutei a cadeira porque o professor me desrespeitou", dizem os alunos. "Discuti com o aluno porque ele não presta atenção", reclamam os docentes. A escola não pode reproduzir situações que ocorrem em muitos lares e na sociedade em geral. Ela tem de criar mecanismos que garantam um clima interno de civilidade - até para servir como uma nova referência para seu público. Não há a possibilidade de um ambiente educativo funcionar bem se o aluno não tem consideração pelo professor e pela direção. O perfil de liderança do bom gestor é fortalecido quando ele constrói regras para garantir a boa convivência entre as partes.

Existem programas em redes públicas que incentivem a boa gestão?
MARIA HELENA No processo de avaliação de Minas Gerais, por exemplo, entram os indicadores de desempenho, de fluxo escolar e também os de qualidade da gestão. O estado tem um sistema misto de escolha do diretor. Faz-se uma prova, os selecionados recebem capacitação, apresentam um plano de trabalho e são eleitos pela comunidade escolar. O mandato pode ser renovado. Porém a cada três anos avalia-se a qualidade da gestão. Quando fui secretária de Educação do Distrito Federal, propus um modelo inspirado no de Minas. Até o momento da eleição, o processo é igual. Uma vez eleito, entretanto, o diretor assina um contrato e um termo de parceria com a Secretaria da Educação e a comunidade, representada por pais e professores. Se não cumprir o plano que apresentou, após três anos ele deixa a direção e volta para a sala de aula. Quem passa por esse processo assume um compromisso mais forte com a escola para transformá-la na melhor instituição possível.

De que forma os pais podem participar desse processo?
MARIA HELENA Para resgatar valores, é crucial organizar uma escola de pais, a maneira como ficou conhecido o espaço criado em algumas instituições para a discussão permanente entre a família e a equipe gestora. Nele, os pais são convidados a conhecer a escola e debater os principais problemas internos, as avaliações externas e o projeto pedagógico. Reunir os familiares com frequência ajuda a ampliar o universo cultural da família por meio de oportunidades de aprendizado. Exemplos: eles podem assistir a um filme ou a uma peça de teatro e depois discutir com os educadores ou ouvir uma palestra sobre sexo na adolescência, drogas e outros temas de interesse geral. Esses eventos são comuns nas boas escolas públicas e privadas, mas muitas vezes faltam onde são mais necessários: na periferia das grandes cidades, que enfrentam situações de extrema carência e onde alunos e professores estão mais expostos a situações externas de risco.

Existem exemplos de escolas de pais bem-sucedidas que tenham alcançado resultados concretos?
MARIA HELENA Há um ótimo exemplo na cidade de Nova York. O bairro do Harlem tinha os piores resultados educacionais e os mais altos índices de violência. Tanto o número de homicídios quanto o de uso de drogas despencaram após o início do trabalho da escola de pais em várias instituições de ensino, pois essa iniciativa aumentou a interação com a comunidade.

De quem deve ser a iniciativa de recuperar a etiqueta escolar?
MARIA HELENA Há 200 mil escolas públicas no Brasil. Não dá para imaginar que o Ministério da Educação sozinho, ou mesmo uma Secretaria de Educação, tenha condições de assumir esse papel por todas elas. Mas acredito que, partindo da supervisão do sistema, é possível orientar a construção de um processo de resgate de procedimentos que vão formar a etiqueta da escola e reforçar os laços de solidariedade e respeito entre gestores, professores, pais e alunos. Isso é importante para que a instituição enxergue os estudantes como alvo principal de seus objetivos e a comunidade perceba que a escola constitui o maior bem de uma política pública porque formará a próxima geração de cidadãos bem preparados.

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