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Como corrigir a defasagem idade-série

Para reverter o quadro crítico de defasagem idade/série, o diretor Amarildo criou classes de aceleração com currículo enxuto e avaliação flexibilizada

POR:
Gustavo Heidrich
Foto: Cristiano Mariz
NOVAS PRÁTICAS Amarildo tirou muitos alunos da condição de fracasso escolar ao rever "o que" e "como" ensinar
Fotos: Cristiano Mariz
Prêmio Victor Civita - Educador Nota 10

Depois que repetiu a 4ª série, Samona Ferreira passou a conviver com as piadinhas dos colegas de classe. "As meninas diziam que eu era burra e não conseguia aprender", conta. A reprovação, somada à súbita prisão da irmã mais velha, quase fez com que ela abandonasse a escola. "Às vezes, achava que ia dar conta, mas, na maior parte do tempo, não tinha a menor vontade de estudar ou fazer as lições de casa", lembra. Há três anos, quando ia iniciar o segundo ciclo do Ensino Fundamental, ela mudou de escola: foi para o CEF 427, localizado em Samambaia, a 45 quilômetros de Brasília. Lá, a história de fracasso começou a ficar para trás.

Em 2008, participou do programa de correção de fluxo A Hora É Essa - Avanço Excepcional, criado pelo diretor, Amarildo Reino de Lima (leia mais no último quadro desta página). A iniciativa, que rendeu a ele o Prêmio Victor Civita - Gestor Nota 10, consistiu na organização de turmas de aceleração para alunos com histórico de pelo menos um ano de repetência. A alternativa permitiu a Samona avançar dois anos em um. "Hoje, estou na 8ª série, pronta para cursar o 1º ano do Ensino Médio", comemora ela, que trocou a apatia pelo entusiasmo (leia o quadro abaixo).

A história de Samona é uma entre centenas parecidas. Isso porque, dos mil alunos matriculados no Ensino Fundamental, 400 se encontravam em situação de defasagem idade/série e tiveram a mesma oportunidade que ela. O segredo da superação está na feliz combinação de uma gestão preocupada com a aprendizagem e de estudantes que precisavam de mais uma chance para ir adiante. "Em vez de apenas criar salas para isolar as crianças defasadas e deixá-las fazendo atividades desconectadas do currículo - como ocorre em muitas escolas -, o diretor e sua equipe fizeram questão de garantir o aprendizado até que fosse possível reintegrar os estudantes às turmas regulares", destaca Ana Amélia Inoue, selecionadora do Prêmio Victor Civita.

Enfim, uma chance para aprender

Foto: Cristiano Mariz

"Minha mãe diz que estou mais responsável que antes. A diferença é que eu entendi as matérias e aprendi a estudar", orgulha-se Samona, com um tímido sorriso no rosto. O ensino mais conectado com o seu universo e o apoio para melhorar a organização da rotina depois das aulas foram decisivos para que a estudante cursasse a 6ª e a 7ª série em um só ano. Com isso, ela se reintegrou a uma turma com colegas que têm a mesma idade dela.

Para ela, o fator que contribuiu para a escolha do projeto de Amarildo, entre os 644 inscritos na categoria Gestor Nota 10, foi a disposição para enfrentar a defasagem idade/série, um problema que leva 19% dos jovens a abandonar os estudos todos os anos. "Ele soube articular várias áreas para fazer o programa acontecer. Mobilizou a equipe e criou instrumentos pedagógicos eficazes, observando a realidade que tinha", explica. A especialista esclarece que criar turmas especiais só faz sentido quando há um grande número de alunos nessa situação, como no CEF 427. "Quando são poucos, essa medida deve ser evitada. Nesse caso, o ideal é promover o avanço nas turmas regulares e recuperar o atraso por meio de aulas de reforço, adaptações de currículo e flexibilização de avaliações", diz Ana Inoue.

Acabaram-se as aulas prontas, que se repetiam todos os anos

"Quando assumi a escola, em janeiro de 2008, existia a cultura da aula pronta. Os professores tinham as atividades do ano todo planejadas em cadernos de capa amarela. Assim, repetiam as rotinas, ano após ano", conta Amarildo. Para acabar com a acomodação, o gestor apresentou à equipe a nova proposta de trabalho, destacando o papel que cada um teria a partir daquele momento. "A resistência foi grande, pois nenhum deles tinha experiência com aceleração", lembra.

Para tornar o projeto viável, foi preciso rever dois elementos que resumem a essência da atividade escolar: "o que" e "como" ensinar. De início, era primordial definir quais conteúdos deveriam ser recuperados e revisados (tanto os que não foram aprendidos como aqueles que foram esquecidos) e quais deviam ser aprofundados para que ocorresse, posteriormente, uma reintegração eficiente. Com base no currículo regular da rede do Distrito Federal e outros adaptados para a Educação de Jovens e Adultos (EJA), os docentes e os coordenadores pedagógicos definiram as temáticas essenciais (leia o quadro abaixo). Juntos, também selecionaram os alunos que teriam de participar do projeto, tomando como referência os dados de desempenho fornecidos pela secretaria da escola.

Equipe unida pelo desejo de ensinar

Foto: Cristiano Mariz

Para mudar as formas de dar aula e avaliar, o gestor contou com o apoio da equipe de coordenação: Francilene Santos, Adriana Teixeira Silva e Rosane Dornelas Rosa (da esquerda para a direita). Depois de selecionarem com os professores quais seriam os conteúdos de trabalho, as supervisoras cuidaram da formação docente para que as atividades levassem os alunos a aprender. Ao mesmo tempo, definiram o horário das classes de aceleração.

A discussão sobre novas formas de ensinar ocorreu ao mesmo tempo, já que as estratégias adotadas até então resultaram em fracassos contínuos de grande parte dos alunos. Dali em diante, outra prática se tornaria permanente: fazer reuniões semanais para avaliar o andamento dos trabalhos. Esses encontros serviram para analisar os relatórios de desempenho individual dos estudantes, planejar as atividades (que contariam com recursos audiovisuais, jornais, revistas e jogos educativos) e refletir mais sobre as estratégias de ensino.

A equipe escolar mais entrosada chegou a melhores alternativas

Hoje, Ana Maria Chaves, professora da 5ª série de aceleração, vê todas as mudanças de forma muito positiva: "Aprendemos a conversar mais com os alunos, a usar novos materiais e a dar aulas que levam em consideração a idade e a vivência deles" (leia o quadro abaixo). De acordo com Amarildo, a mudança de postura dos professores, com maior dedicação aos alunos e às dificuldades que apresentavam, também teve um efeito benéfico no relacionamento entre eles e a equipe gestora. "A comunicação melhorou. Todos começaram a trocar experiências. Falavam sobre as práticas pedagógicas que eram eficazes e, juntos, buscavam soluções para os problemas que iam aparecendo."

Aulas repensadas, ânimo recuperado

Foto: Cristiano Mariz

Com o projeto de classes de aceleração em prática, a professora Ana Maria Chaves passou a oferecer aulas bem diferentes. Dar espaço para a vivência dos alunos foi uma das mudanças mais significativas. A atitude teve impacto na aprendizagem e na disposição dos jovens em situação de defasagem. O desânimo para o estudo, a baixa confiança em si mesmos e o desejo de abandonar a escola deixaram de ser sentimentos típicos entre eles.

As duas supervisoras pedagógicas e as quatro coordenadoras foram as principais responsáveis pelo trabalho mais próximo com os docentes, repensando dia a dia os conteúdos e as estratégias para as classes de aceleração - o que acabou sendo útil para repensar as práticas também nas classes regulares. "Nas reuniões de formação, discutíamos a evolução de cada aluno e cada turma e elaborávamos formas específicas de ensinar. Até incluíamos conteúdos que tinham ficado de fora do currículo adaptado", conta a coordenadora pedagógica Francilene Santos.

A avaliação foi outro aspecto que demandou a atenção de todos. "Tínhamos mudado tudo, do currículo à forma de ensinar. Então, não podíamos continuar usando os mesmos instrumentos avaliativos", explica a supervisora pedagógica Rosane Dornelas Rosa. Depois de muita reflexão, decidiu-se que o rendimento seria mensurado por aspectos ligados ao conhecimento e às atitudes. A avaliação ficou dividida em três partes. A primeira apresentava provas por disciplina, elaboradas especialmente para as turmas de aceleração, respeitando o novo currículo. A segunda, testes multidisciplinares com conteúdos básicos de cada área do conhecimento, feitos tanto pelos alunos das turmas regulares como pelos de aceleração. Por fim, 20% do desempenho final dos estudantes do projeto era medido por meio da participação, do comprometimento e de outros fatores comportamentais, os quais eram avaliados em conjunto por todos os docentes.

Os pais participaram de perto das ações contra a defasagem

Ao preparar tantas alterações com sua equipe, Amarildo tomou cuidado para que o processo ficasse claro para os alunos com defasagem e seus pais. Numa reunião prévia, o gestor explicou como o ensino seria organizado e solicitou aos responsáveis uma autorização para que os filhos participassem das classes de aceleração. Com essa etapa cumprida, foi dado o sinal verde para que ele e a equipe iniciassem as atividades de diagnóstico a fim de identificar o nível de conhecimento de cada estudante. Essa informação e o critério etário permitiram a organização de seis turmas do projeto.

Ao longo do ano, a interface com os pais se tornou fundamental para perceber as dificuldades e os resultados de aprendizagem dos alunos. "Conversar com as famílias, durante reuniões marcadas ou nos momentos em que eles nos procuravam na escola, permitiu que acompanhássemos a criação de rotinas de estudo em casa. O desenvolvimento desse comportamento foi imprescindível para que houvesse avanço, mesmo com muitos conteúdos sendo trabalhados em pouco tempo", afirma Adriana Teixeira Silva, supervisora e orientadora educacional.

Além de Samona, 90% dos estudantes de aceleração do projeto superaram a defasagem, ainda que alguns tenham recuperado apenas um ano. Com isso, 25% dos alunos foram reintegrados às classes regulares. Esse resultado já seria uma grata recompensa. Até que o teste externo da rede do Distrito Federal fechou o ciclo com mais uma conquista: os alunos do CEF 427 que fizeram a prova conseguiram a melhor média da cidade. "E ainda superaram o resultado médio alcançado pelo Distrito Federal", destaca Amarildo. "Costumo dizer que os únicos lugares que não podem fechar as portas para uma criança são a casa e a escola."

Quem é Amarildo

Há 12 anos na rede do Distrito Federal, onde nasceu, Amarildo Reino de Lima já se incomodava com a repetência quando ainda era professor de Matemática, função que desempenhou por quatro anos. "Dezenas de estudantes ficavam retidos todos os anos e ninguém sabia o que fazer", lembra. Hoje, aos 44 anos, casado com uma professora de Arte e pai de dois filhos, ele se orgulha das conquistas como diretor de escola, algo que escolheu para si desde 2002. "Sabia que como gestor eu poderia fazer mais pelo coletivo." Formado em Economia e Matemática e especialista em Gestão Escolar, Amarildo superou desafios até assumir o CEF 427, em 2008. Passou por provas escritas, entrevistas e pela apresentação de um plano de trabalho, no caso, o projeto A Hora É Essa - Avanço Excepcional. Os resultados práticos agradaram. Tanto que ele foi eleito para seguir no cargo por mais dois anos. Atualmente, quer sedimentar as estratégias com sua equipe para que elas não desapareçam quando ele sair da escola. "Pretendo buscar mais aperfeiçoamento e, quem sabe, pleitear um cargo ligado à formulação de políticas públicas", diz.

Quer saber mais?

CONTATOS
Amarildo Reino de Lima
Ana Inoue
CEF 427, QR 427, Área Especial 2, 72015-605, Samambaia, DF, tel. (61) 3901-7930 

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