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Opinião: educador não precisa de bônus

Experiências e estudos mostram que não há mudanças positivas com a política incentivada pelo Plano Nacional de Educação

POR:
Ângelo Ricardo de Souza
Ângelo Ricardo de Souza. Foto: Rodrigo Janasievicz
Ângelo Ricardo de Souza Professor e pesquisador do Núcleo de Políticas Educacionais e do Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal do Paraná (UFPR)

"Eu fico indignado quando vejo um colega que se esforça bem menos e ganha a mesma coisa que eu!" Ou: "Quando alguém consegue alcançar resultados melhores, merece receber mais!". E ainda: "A competição é salutar para o trabalho, especialmente no serviço público". Argumentos como esses auxiliam a construir as ideias que dão suporte a práticas que enfatizam o pagamento de educadores mediante alguma aferição de resultados. Tais procedimentos, seguidos por vários municípios e estados brasileiros, já foram aplicados em outros países, e pesquisas mostram que não há nenhuma garantia de mudanças positivas após a adoção deles.

A despeito disso, o Plano Nacional de Educação (PNE), recém-aprovado, abriu a possibilidade de incentivar a constituição desse tipo de ação com a estratégia de número 7.36. Diz o texto: "(...) estabelecer políticas de estímulo às escolas que melhorarem o desempenho no Ideb, de modo a valorizar o mérito do corpo docente, da direção e da comunidade escolar". Como se pode ver, o texto da estratégia, que foi criada como um apoio para a melhoria das notas no Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), não determina diretamente o pagamento de bônus vinculado a resultados estudantis. Mas contribui com essa ideia, pois entende que aqueles que mais se esforçam devem ser premiados.

De qualquer maneira, nessa proposição há pelo menos duas teses centrais. A primeira se relaciona com a noção de que ao pagar (mais) para o educador, vinculando tal prêmio ao desempenho dos estudantes em provas ou instrumentos avaliativos padronizados, haverá estímulo para os profissionais levarem as turmas a alcançar melhores notas nos tais testes. A segunda concepção, base para a primeira, é que os resultados dos alunos naquelas provas dependem, direta, decisiva e prioritariamente, da ação dos professores. Ou seja, todos os estudantes tendem a ser muito parecidos, mas é o mérito da ação docente que pode diferenciá-los.

Por que o pagamento extra não é a solução

Todos nós somos estimulados ou não, de acordo com um conjunto de variáveis. Remuneração é, seguramente, um elemento importante nesse contexto, especialmente se estamos tratando de uma categoria profissional com salários reconhecidamente menores que áreas com formação equivalente (Alves e Pinto, 2011). Mas, supor que os educadores trabalham (mais) apenas pelo pagamento que lhe é concedido, é ignorar a história de composição da própria carreira docente. Professores e gestores se orgulham muito do que fazem, mesmo recebendo muito aquém do que merecem. Estudos mostram, inclusive, que a desistência ou resistência na profissão tem conexão com fatores mais complexos do que salário, por mais importante que ele seja (Caldas, 2007).

E há mais. Avaliar que os educadores trabalharão mais e melhor por causa de um bônus implica reconhecer que: a) os docentes ganham pouco mesmo, porque, se ganhassem bem, não precisariam ser motivados com um valor extra; e b) os educadores não trabalham bem em condições normais, e a gestão pública admite isso, tanto que lhes paga pouco, a tal ponto que, ao passar a fazer mais ou melhor (e a garantir que os alunos tenham bom desempenho), receberão algo a mais.

Por outro lado, ainda em relação ao estímulo pecuniário aos docentes, há outro problema, que tem relação com a simplificação da ação pedagógica ou, pior, com a fraude. Consideremos que todos se sentirão mobilizados em levar os estudantes a se sair bem nos testes padronizados, pois receberão mais por isso. Qual garantia temos de que os professores não estarão apenas preparando os alunos para a prova? Afinal, se a régua de medida para o alcance da gratificação salarial está associada ao resultado em um exame, é razoável supor que poucos irão "perder" tempo ensinando coisas que não estão inseridas nele. A escola tem uma tarefa muito maior e mais complexa do que preparar crianças e adolescentes para fazer provas. O problema é que o teste não parece ser uma boa medida sobre o que se compreende por Educação de qualidade, afinal, nos exames que têm sido aplicados no Brasil, há um sem-número de conteúdos, valores e atitudes não considerados. Por exemplo, a Arte, a História, a Geografia, a Educação Física e a Língua Estrangeira não compõem as temáticas abordadas pelas avaliações.

Mas, o pior pode vir com a burla às regras do jogo. Se o pagamento que os docentes receberão tem relação com o desempenho dos alunos, e depende estritamente disso, é razoável supor que muitos farão de tudo, mesmo burlando o sistema, para garantir os resultados. Isto não é difícil e há domínio público sobre estratégias para melhorar a média de um grupo em um teste sem, necessariamente, melhorar a qualidade da aprendizagem.

Essas questões, todavia, não se resolveriam apenas ampliando o conjunto de disciplinas consideradas, ou buscando mecanismos de controle contra a fraude, pois não há evidências de que tais instrumentos tenham a competência de avaliar a qualidade do trabalho educacional, puramente. E aqui chegamos nos problemas da segunda tese.

O papel da escola e o contexto de quem chega a ela

Imaginemos duas crianças com trajetórias de vida muito distintas. Ambas moram na mesma cidade e estudam em escolas municipais, mas vivem em bairros distantes um do outro. A primeira delas nasceu e viveu em uma comunidade e em uma família com frágil capital econômico, o que dificultou que tivesse acesso a livros, museus e teatros, por exemplo. A outra teve uma condição melhor desde o nascimento. Nasceu em uma família também sem muito capital econômico, mas os livros estavam bastante presentes.

Há alguma razão para supor, a priori, que a primeira criança terá insucesso e a segunda terá bons resultados na aprendizagem? Seguramente não. Mas, como a forma escolar e a articulação dela com os padrões culturais dominantes são muito fortes, as chances da segunda ter melhor adaptação e desempenho são maiores, quase que independentemente do ensino, como atestam vários estudos realizados (Coleman, 1966; Soares e Andrade, 2006).

Contudo, sabemos que uma criança sozinha não mudaria os resultados médios de uma escola. Porém, a desigualdade econômica, social e cultural é também desenhada geograficamente. O que quer dizer que os estudantes de uma instituição são de uma área que é marcada por determinadas características, produzindo uma relativa similitude no perfil dos estudantes. Assim, a escola na qual estuda aquela primeira criança deve ter muitas outras parecidas com ela e, por isso, deve estar lidando com desafios maiores do ponto de vista educacional do que a unidade que atende o segundo aluno do nosso exemplo.

Como podemos comparar essas instituições? A régua tem, nesse caso, um erro: ela mede na mesma escala situações, a priori, distintas, ignorando o ponto de partida de cada uma delas. Assim, os bônus aos docentes vinculados ao desempenho dos alunos não podem ignorar tais contextos.

Todavia, isso poderia ser sanado com a exclusão da comparação entre as escolas, afinal, se não se pode comparar uma unidade educacional tão diferente de outra, é possível ao menos compará-las com elas mesmas. Sim, aí teríamos um indicador mais interessante. Mas ainda permanece o problema dos impactos gerados pelas dificuldades exógenas ao ensino. Isto é, até que ponto o docente é capaz de superar, apenas com os recursos escolares disponíveis, as dificuldades derivadas daquele background familiar ou comunitário? Têm os educadores ferramentas suficientes (para além do estímulo gerado pelo bônus financeiro) para promover a melhora do desempenho dos seus alunos? Aparentemente, não. Pois, estudos mostram que uma proporção significativa dos resultados é derivada realmente de variáveis não controladas internamente pelas instituições e, mesmo com o porcentual de responsabilidade que lhe é devido, os educadores conseguem atuar até certo limite, mas não para além dele.

De qualquer forma, há margem razoável para a dúvida e, portanto, para a recusa na adoção de políticas de pagamento de bônus vinculado a mérito. Por isso, se os argumentos anteriores não são suficientes, ainda resta um ponto, quiçá o mais importante. Trata-se do objetivo de enviar as crianças e os jovens para uma instituição de ensino. Por que fazemos isso? Para que aprendam Matemática, Língua Portuguesa, Língua Estrangeira, História, Filosofia etc. Mas também os enviamos porque acreditamos que a escola é um lugar bom, seguro e adequado, que contribui para a socialização. Isto é, enviamos-lhes com o intuito de, ao conviverem com outros, aprenderem o próprio convívio.

A soma desses dois grandes objetivos - o aprendizado dos conteúdos das disciplinas e da convivência - produz um resultado articulado ao (talvez principal) objetivo da escola: formar para o exercício da cidadania! Esses aspectos não são mensuráveis pelos exames padronizados. Assim, por mais importante que seja medir os resultados em avaliações, a Educação tem dimensões mais amplas e significativas que não cabem naquelas escalas. E uma condição para atingir esses objetivos é um ambiente de diálogo, companheirismo e alegria para aprender e conviver. Logo, a pressão por boas notas em provas, a qualquer custo, pouco ajuda o desenvolvimento da área, mesmo que auxilie a melhora das médias, o que, como vimos, é algo menor.

Os profissionais da Educação são muito dedicados e vêm, nos últimos anos, ampliando muito seu nível de formação (inicial e continuada). Com isso, têm tido mais condições de ampliar o universo cultural que é constituído pelo ambiente escolar. Merecem melhor reconhecimento e valorização pela sociedade e pelo Estado, merecem melhores salários. Aquele bônus é, assim, desnecessário e ofensivo, pois os educadores não devem ser diminuídos à noção de que trabalham apenas quando lhe acenam com um acréscimo de dinheiro no final do ano.

Referências bibliográficas

  • Alves, T.; Pinto, J. M. R. Remuneração e Características do Trabalho Docente no Brasil: Um Aporte dos Dados do Censo Escolar e da PNAD. Cadernos de Pesquisa (Fundação Carlos Chagas. Impresso), v. 41, p. 1-10, 2011.
  • Caldas, A. R. Desistência e Resistência no Trabalho Docente: Um Estudo das Professoras e Professores do Ensino Fundamental da Rede Municipal de Educação de Curitiba. Tese de Doutorado (Educação). Curitiba: UFPR, 2007.
  • Coleman, J. S. et al. Equality of Educational Opportunity. Washington: U.S. Government Printing Office, 1966.
  • Folha S. Paulo. Modelo para SP, Bônus para Docente em NY É Cancelado. 20/07/2011.
  • Soares, J. F.; Andrade, R. J. Nível Socioeconômico, Qualidade e Equidade das Escolas de Belo Horizonte. Ensaio. Avaliação e Políticas Públicas em Educação. Rio de Janeiro, v. 14, n.50, p. 107-126, 2006.