“Estou trazendo minha filha pra essa escola porque onde ela estava sofria muita discriminação. É que além de negra, ela é gorda!”
Essa foi a fala de uma mãe para a supervisora pedagógica da escola que receberia a transferência da garota de 7º ano. Na minha cidade, a supervisora tem a função de orientar alunos, professores e famílias, assim como as orientadoras e coordenadoras pedagógicas. Essa supervisora em questão me enviou um e-mail a fim de pensarmos juntas sobre o fato. Compartilho com vocês nossas reflexões.
É interessante começar por entender claramente que a discriminação e o preconceito são criações sociais. Portanto, vale dizer que somos, no mínimo, corresponsáveis pelas mais diversas manifestações preconceituosas e discriminatórias presentes no cotidiano das escolas, uma vez que em pleno século 21 ainda testemunhamos cenas em que a intolerância étnica, religiosa ou estética se sobrepõe às relações. Pensando na fala da mãe – “além de negra, ela é gorda!” – parece que por trás da angústia de quem não suporta mais acompanhar o sofrimento da filha, há também certa concordância de que a aparência da garota justifica os maltratos. Essa concordância inconsciente de que algumas características pessoais provocam a discriminação tem atravessado décadas, séculos. Uma das hipóteses que tenho é de que a maneira como algumas escolas têm trabalhado o tema das diferenças, tem, na verdade, reforçado a ideia do preconceito. Ou seja: um trabalho na contramão dos próprios objetivos.
Conversando com a colega que me procurou, indaguei como ela estaria orientando sua equipe de professores quanto ao trabalho com a diversidade. Foi muito interessante perceber o quanto aquela pergunta gerou incômodo. Ela, de forma impulsiva, começou a listar todos os projetos e eventos que a escola promove para debater a diversidade e as diferenças. Com o intuito de conhecer mais detalhes daquele trabalho, insisti na pergunta: “Como você tem orientado sua equipe para lidar com as diferenças?”. Porque, afinal de contas, a orientação pedagógica não deve ser um cargo da escola e sim uma função: a de auxiliar alunos, professores e famílias acerca não só das questões ligadas ao desempenho acadêmico dos estudantes, mas também sobre suas relações sociais. O objetivo sempre é o de entender as demandas de cada segmento, considerando as diferentes perspectivas. Voltando às tentativas da colega supervisora em organizar sua resposta, ela então, enfatiza que todo o trabalho era pautado na busca pela igualdade. A partir dessa afirmação, provoquei: “Que igualdade é essa? Igualdade em quê?”. Na verdade, meu propósito era gerar uma reflexão necessária não só para aquela educadora como para muitos outros que reproduzem uma falsa ideia de igualdade.
Em geral, o respeito e a tolerância com a diversidade e as diferenças têm sido a postura pedagogicamente recomendada. Entretanto, se o que se deseja é a igualdade de direitos entre as pessoas, não são suficientes os trabalhos pontuais, projetos de curta duração ou comemorações das datas em que se tenta resgatar, por exemplo, a dívida social que temos em relação aos negros.
O que muitas vezes não pensamos é que não há possibilidade de trabalhar o tema ‘diferença’ sem, paralelamente, desenvolver uma proposta de construção da ‘identidade’, isto é, o espaço da identidade reservado para o reconhecimento de quem sou eu: “sou brasileira”, “sou branca”, “sou mulher”. A diferença, de certa forma, marca o que o outro é: “ela é nigeriana”, “ela é negra”, etc… A sociedade é composta por pessoas pertencentes a grupos étnico-raciais distintos e a Educação deve fortalecer a igualdade de direitos, reconhecendo e valorizando as diferentes culturas e histórias presentes em cada grupo. Nessa direção, há a necessidade de conectar os objetivos, as estratégias de ensino e as atividades com a experiência de vida dos alunos e professores. Devemos dar sentido para o conhecimento e criar oportunidades para que as diferenças sejam respeitadas. Essa conexão de diferentes culturas abre um valioso espaço para o desenvolvimento do pensamento crítico tão necessário para a compreensão de que o preconceito, a discriminação e outros inimigos da convivência são produções sociais necessárias para a manutenção das disparidades de poder.
Retomando nosso caso, a notícia que tive da colega supervisora foi que ao menos um dos professores que ela orienta adotou em suas aulas as práticas dialógicas e reflexivas. Além dos círculos de cultura (momento em que os alunos compartilham conhecimentos e experiências próprias), ele abriu espaço para que os estudantes colocassem o que lhes desperta interesse, e com base nisso fomentou o trabalho de pesquisa para responder às demandas dos alunos. Procurei esse docente para saber quais temas de interesse teriam surgido entre os estudantes. Além das curiosidades naturais sobre reprodução humana e sexo, ele me contou que a garota ‘negra e gorda’, num determinado dia, sentindo-se mais segura e acolhida, compartilhou com a sala todo o sofrimento vivido na antiga escola. Do depoimento da supervisora, mais um tema surgiu como interesse de pesquisa: por que existe a maldade? De onde ela vem? E claro que sugeri ao professor que acrescentasse a essas, outras perguntas: por que existe o preconceito, a discriminação? De onde eles surgem?
Podemos concluir que a escola, antes de celebrar a diferença e a diversidade por meio de exposições e apresentações diversas, deve promover e incentivar os estudantes a questioná-las.
Como disparador do trabalho, fica a dica de levar para a sala de aula a música Ser Diferente é Normal, dos compositores Adilson Xavier e Vinícius Castro. E para seu aprofundamento no tema, vale conhecer o livro “Documentos de Identidade – Uma Introdução às Teorias do Currículo”, de Tomaz Tadeu da Silva (Editora Autêntica, 156 páginas).
E você, já viveu alguma situação de preconceito ou discriminação? Compartilhe conosco!
Cumprimentos mineiros e até a próxima segunda!