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Diretora da creche de Janaúba: “Os pais me dizem que os filhos eram felizes na escola”

Aline conta como tudo aconteceu e fala sobre o futuro incerto da creche

POR:
Caroline Monteiro

Cinco de outubro de 2017 ainda não acabou em Janaúba. E vai demorar para acabar. A cidade de pouco mais de 70 mil habitantes no norte de Minas Gerais ainda vive a tragédia do Centro Municipal de Educação Infantil Gente Inocente, atacada por um funcionário que colocou fogo em colegas, alunos e em si próprio, deixando 11 mortos.

Quem sobreviveu ao incêndio ainda tenta digerir tudo. É o caso de Aline Cristina Mendes, diretora da creche. Ela escapou das chamas e ainda salvou crianças e colegas, mas viu outros não terem a mesma sorte.

Aline conversou com GESTÃO ESCOLAR para contar o que vê e ainda vive desse 5 de outubro. E como o fato de toda a comunidade estar unida tem sido fundamental para encarar a tragédia: “Os pais estão nos abraçando também. Quando você chega no velório, a mãe diz: ‘Não sofra. Ele era feliz com você, eles aprendiam de verdade’. Isso nos faz querer vencer o amanhã. Eles podiam estar culpando a escola, mas não. Então vale a pena ainda fazer Educação”.

Veja abaixo o depoimento de Aline Mendes, diretora da creche Gente Inocente (atenção: o relato contém descrições de cenas fortes, sobretudo no trecho "O ataque").

O antes

A escola tinha cinco turmas, com participação efetiva dos pais. Os alunos eram frequentes, alegres. O nosso dia a dia era envolvido por ludicidade e cooperação. O papel da escola não era simplesmente transmitir o conhecimento, mas era a construtora do conhecimento. Todos os projetos desenvolvidos na escola eram desenvolvidos a mãos. Mãos de professores, mãos de pais, mãos de parceiros, mãos pequeninas das crianças, ávidas por conhecer, experimentar, observar, questionar e refletir o mundo ao nosso redor.

Sempre defendi a seguinte ideia: a Educacao Infantil e a família é a base da criança. Por isso, nos preocupávamos tanto com o social e a aprendizagem. Acreditamos que sem o social não há aprendizagem e sem aprendizagem não existe social. A base da criança está na Educação Infantil. Sempre preocupamos com as múltiplas inteligências das crianças. Saber que elas precisavam experimentar, ver, sentir. Esse era o nosso papel, assim era a nossa escola. Cheia de vida, cheia de desejos, cheia de vontades, de vencer para o amanhã. Até porque era uma escola de periferia.

O ataque

Ele chegou, bateu no portão e chamou por mim. Uma funcionária abriu o portão, ele entrou e disse: “Cadê a Aline?”. A professora Célia respondeu: “Ó ela lá”. Eu estava na minha mesa e perguntei: “Você melhorou, Seu Damião?”. E ele disse que estava muito ruim, muito doente.

Foi então tirando a mochila das costas. Ele sempre andava com aquela mochila. Estava meio pálido e perguntou de novo: “Cadê a Aline?”. Eu respondi: “Oi, Seu Damião, você sarou?”. “Não, Aline, vou consultar à tarde, aí eu trago o atestado.”

Quando olhei, ele já estava abrindo um pote que estava dentro da mochila. A gente achou que era sorvete, porque era a programação da festa das crianças. Depois, eu vi que era um líquido vermelho e pensei que fosse suco de groselha para distribuir pros meninos.

Foi tudo muito rápido. Ele começou a dar banho com aquele líquido nas crianças perto dele. Quando as primeiras crianças tentaram levantar, ele ficou meio que impedindo que elas saíssem. E aí muito rapidamente ele tirou o fósforo do bolso. Foi nesse momento que nós percebemos que algo estava errado. Ele acendeu o fósforo, já foi jogando, e o fogo já foi pegando em todo mundo. A auxiliar Jéssica [que ainda está internada em estado grave, com queimadura em 80% do corpo] pegou fogo por inteiro, saiu como uma bola de fogo.

Eu corri pro banheiro com algumas crianças que estavam com a professora Tatiane [que não precisou ser internada]. Ela segurou a porta do banheiro para não correr o risco de o Damião abrir e botar fogo lá dentro. Eu fui subindo no vaso com as crianças, eram quatro comigo. A gente batia no vidro, eu consegui quebrar a janela e comecei a pedir o socorro, mas ninguém nos ouvia. A Jéssica já estava gritando que o fogo tinha apagado, e falou para a Tati que ela podia abrir, porque o Seu Damião já tinha saído.

Quando ela abriu a porta, entrou uma nuvem muito preta de fumaça e outras crianças entraram lá dentro. Eu continuei gritando socorro, e fui até a porta de onde dava pra ver a sala. Olhei para o teto muito rápido e vi que estava caindo, derretendo. Aí eu falei para as crianças: “Nós vamos correr. A Maria Rita estava em uma mão. Marcos e o Gabriel na outra. Eu peguei na mão deles e saí correndo, pulando sobre as coisas no meio da sala. Ainda tinha muito fogo.

Nós passamos pelo corpo de uma adulta, deitado no chão e pegando fogo, e mais três crianças. Só vi três crianças. As outras iam deitando no chão, de calcinha e cueca, porque elas estavam esperando o banho de mangueira, e outras estavam de uniforme. A Geni [professora que também está internada em estado grave] disse para mim: “O que esse homem fez com a gente?”. Enquanto isso, eu via que a pele dela ia caindo, parecia que o olho dela ia sair. Quando ela mexia a pele conversando, a pele soltava.

O Mateus [socorrido com vida, mas que faleceu na segunda-feira] estava em pé, como se fosse uma múmia, com sangue pelo nariz. Todos, com exceção dos que morreram no local, caminhavam, andavam, não sabiam o que realmente tinha acontecido. Alguns vieram a falecer no hospital, mas estavam conscientes depois do ataque.

Na minha cabeça, eu não acredito que o seu Damião colocou fogo nele mesmo. Eu acho que, ao jogar o combustível, derramou na mão e na roupa. A professora Heley, no chão, fazia o movimento do braço para pegar mais crianças. E ela nesse dia estava com uma blusa preta, calça preta, e tinha uma cruz dourada, acho que escrito Jesus, na roupa dela.

A incredulidade

Deus não permitiu que a tragédia fosse maior. Como o primeiro portão estava trancado, se ele coloca fogo do lado do berçário pra cá, tinha morrido todo mundo, porque ninguém ia conseguir sair. As crianças foram tirando as roupas, gritavam muito pela mãe. E a gente não tinha forças. Quem conseguiu reagir era quem não estava no local. A sensação que eu tinha era que eu tava num lugar que não era esse mundo. Sempre a sensação de um filme de terror. Logo em seguida comecei a vomitar uma secreção preta, com sangue, e acho que foi isso que me livrou dessa fumaça, porque depois só fiquei em observação, não precisei de medicamento.

Foto: Getty Images

A gente não acreditava no que estava acontecendo, porque o seu Damião nunca alterou a voz. Eu já havia encontrado ele umas quatro vezes. Uma quando entrei na escola, outras quando nós fizemos uma rifa para arrecadar dinheiro, e depois quando ele foi me solicitar as férias.

Ele estava há três meses de férias. No primeiro momento, ele tinha me pedido seis meses. Mas aí ele disse que três meses estava bom. Ele voltou no finalzinho de setembro. Aí, na segunda-feira da semana passada, ele não trabalhou e me ligou dizendo que não ia trabalhar. Outro guarda, o Seu Hélio, foi na casa dele pegar a chave da escola. E o Damião disse que alguém tinha pegado a chave dele para copiar e que tinha envenenado os sorvetes [segundo Bruno Fernandes Barbosa, delegado responsável pelo caso, Damião tinha síndrome de perseguição]. Eu me preocupei.

Na terça, a Secretaria de Educação pediu para ligar para ele porque ele não tinha ido para a escola. Na quarta, nós fomos fazer a recreação no clube e eu liguei às 18h para o Seu Hélio e pedi para que ele passasse na casa do Damião, mas ele não podia ir. O seu Damião não trabalhou também na quarta.

Na quinta pela manhã, umas 8h30, eu liguei e ele não atendeu. Na segunda tentativa ele atendeu e disse: “Não, minha filha, eu não melhorei e acho que não vou melhorar, viu. De hoje, eu acho que não passo. Tô só esperando a morte”. Aí eu disse: “Tô preocupada, fala isso não, Damião”. E ele me disse para não me preocupar, e logo desligou. Passou 40 minutos, ele apareceu na creche e tudo aconteceu.

Eu tenho a sensação de que o terror durou três minutos. Ele entrou rapidamente, a calça estava entreaberta, a blusa só com o botão do meio e não falou mais nada. Só perguntou por mim. Achei que o alvo seria eu, mas ele queria acabar com a escola. Ele tinha amizade com o pessoal da rua. A gente nunca teve desconfiança, mas talvez, se a gente tivesse convivido com ele durante o dia, mais tempo... Ele era uma pessoa diferente, quieto, meio durão. E todas às vezes que a gente falava que tinha uma preocupação, ele dizia: "Preocupa, não".

O recomeço

Os Bombeiros e o Samu demoraram mais, porque eles acharam que era outra creche. Os carros dos vizinhos já estavam levando as crianças para o hospital. As crianças vinham embora, mas mais tarde, por conta da fumaça, retornavam, e já iam sendo entubadas. Não queimaram nada, mas ingeriram muita fumaça. A merendeira não queimou, mas tentou salvar as crianças. Ontem e anteontem entrou em choque, foi para a CTI, porque a glicose subiu muito. Além da glicose, tem a pressão psicológica também, mas ela saiu da CTI e foi para o quarto.

LEIA MAIS: Acima de tudo, professora: essa era Heley, a heroína da tragédia de Janaúba

Ainda não tivemos reunião com a secretaria, disseram que amanhã ou depois vamos nos reunir. Os meninos estão em choque, não falam. É difícil falar como vamos recomeçar. Não sei como recomeçar, não tenho noção, não temos estrutura. Eu acredito que Deus tinha um propósito, eu não acredito que ele ia tirar tantas vidas do nada. A maioria dos filhos que morreram são filhos únicos, os pais muito participativos dentro da escola. Talvez a escola seja reconstruída no mesmo local, mas ainda não sabemos. Alguns servidores não conseguem passar na rua da escola. A gente fica se perguntando: os pais vão confiar? Os meninos vão querer retornar? O que falar para essas criancas quando elas chegarem?

A relação com as famílias

Crianças da creche Gente Inocente em passeio no dia 4 de outubro

Hoje nós entendemos como é bom atender bem a família. Os pais estão nos abraçando também. Quando você chega no velório, a mãe diz: “Não sofra. Ele era feliz com você, eles aprendiam de verdade”. Isso nos faz querer vencer o amanhã. Eles podiam estar culpando a escola, mas não. Então vale a pena ainda fazer Educação, mesmo o mundo estando da maneira que está, com aluno batendo em professor, pai sendo agredido por professor...

É acolhimento. Indo de casa em casa, hoje eu entendo que a escola era um aconchego, apesar de ser pequena, que tinha um desafio enorme. Mas vale a pena acreditar, vale a pena acolher, sem se preocupar com o que vai receber em troca. A escola podia ser pequena, mas eles tinham o melhor, o amor. Tem criança lá que mora com os pais em um cômodo. Então eu consigo entender porque eram tão presentes. A escola significava muito.

A gente tinha muito cuidado de receber bem os pais. Se tinha uma reunião, às vezes faltava só dois pais, e depois ia lá para procurar saber o que tinha acontecido na escola. Quando você vê que uma escola tão pequena conseguia caminhar junto com a comunidade, era porque tinha sentido naquele lugar. Por mais que as pessoas não conheciam, para a comunidade ela tinha esse valor. E se a gente não se apegar a isso, não sei o que vai ser.