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Leia dicas e respostas da especialista em Psicologia da Educação, Catarina Iavelberg, sobre a vida escolar dos alunos e sobre a relação entre a instituição e a família

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Catarina Iavelberg
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A delação e os afetos

Estimular as denúncias pode colocar em risco as relações de confiança entre os alunos

POR:
Catarina Iavelberg
Catarina Iavelberg. Foto: Tamires Kopp Nosso Aluno

Catarina Iavelberg é assessora psicoeducacional especializada em Psicologia da Educação

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Quando ocorrem na escola eventos de autoria desconhecida (depredação do espaço, furto etc.), nossa primeira ação é querer saber quem é o autor. Nessa situação, por vezes, professores e gestores têm falas ameaçadoras, chegando a declarar que, se ninguém indicar os culpados, todos serão responsabilizados e punidos. Estimular a delação de colegas é nocivo e pode colocar em risco a relação de confiança na comunidade e entre os alunos. É importante analisar as causas das transgressões e atuar preventivamente, tornando o tema, inclusive, um conteúdo a ser trabalhado na escola.

A delação carrega representações ambivalentes. Por um lado, Judas Iscariotes e Joaquim Silvério dos Reis foram célebres traidores - não só de Cristo e Tiradentes, respectivamente, mas também da humanidade. Governos totalitários usaram esse procedimento para identificar quem era contra o regime. Por outro, denúncias anônimas ajudam a Justiça. O Código Penal, por exemplo, contempla a delação premiada, oferecendo redução de pena a coautores de crimes desde que esses colaborem na investigação do delito ou na identificação de outros infratores.

Uma sugestão aos gestores é a realização, com regularidade, de ações formativas com a equipe para analisar as consequências éticas que envolvem a denúncia. Filmes como A Sociedade dos Poetas Mortos, A Vida dos Outros, Todos os Homens do Presidente e O Informante podem estimular as discussões e ajudar a rever as práticas junto aos alunos.

É comum crianças menores denunciarem espontaneamente comportamentos inadequados dos colegas - um ato ligado ao sentimento de pertencimento e à compreensão das regras e dos valores do grupo. Elas apontam o que julgam errado para terem certeza de que as regras de convivência serão aplicadas, e os transgressores, castigados. O professor não deve punir quem faz a revelação. No entanto, não pode encorajar a prática. Já os pré-adolescentes começam a se relacionar de um modo diferente entre si e com o mundo adulto. A natureza das relações interpessoais fica complexa e surgem incertezas quanto ao ato de denunciar. A qualidade da interação com o colega ou o grupo faz com que o aluno ressignifique as consequências da sua ação. Surgem contradições: o jovem teme que, ao entregar alguém, passe a ser chamado de dedo-duro ou seja alvo de retaliações.

A gestão de questões morais deve considerar as dimensões afetivas. Precisamos atuar levando em consideração a relação entre o pensamento, a ação e o afeto. A aposta deve ser em ações voltadas para a criação de um espaço onde os alunos possam problematizar a denúncia ao pensar e agir eticamente. As discussões e deliberações das assembleias entre eles são tão importantes quanto o trabalho com textos e filmes que incitem o grupo a pensar sobre o assunto.

A reflexão sobre a delação só será transformadora se for construída onde o pensamento é autônomo. Aprecio as palavras do filósofo espanhol Fernando Savater: "Não somos livres para escolher o que nos acontece, mas livres para responder ao que nos acontece de um modo ou de outro". Se conseguirmos ensinar a responsabilidade da liberdade aos alunos, grande parte da nossa missão de educadores terá sido cumprida.