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Ensinar e aprender a ler e a escrever na escola hoje

Como a diversificação e a intensificação da cultura da escrita influenciam o trabalho de professores e diretores

POR:
Daniel Goldin
Daniel Goldin. Foto: Acervo pessoal
Daniel Goldin, diretor da Biblioteca Vasconcelos, no México. Durante mais de 25 anos, editou livros para crianças. Também dirigiu duas coleções sobre cultura escrita com uma perspectiva multidisciplinar. No ano 2000, escreveu em uma delas a introdução de Ler e Escrever na Escola: o Real, o Possível e o Necessário (128 págs., Ed. Artmed, tel. 0800 703 3444, 49 reais), da pesquisadora argentina Delia Lerner. No Brasil, também publicou Os Dias e os Livros — Divagações sobre a Hospitalidade da Leitura (176 págs., Ed. Pulo do Gato, tel. 11 3214-0228, 29 reais)

Com base no prólogo que acompanha a obra fundamental de Delia Lerner, a equipe de GESTÃO ESCOLAR me pediu que fizesse um artigo sobre o papel dos diretores na formação de leitores na escola. Minha resposta é esta falsa entrevista. Espero que você compreenda que essa manobra literária procura ser, antes de tudo, um convite ao diálogo e um ato de congruência.


Por que você insistiu que não queria escrever um artigo, e sim uma entrevista?
Vivemos em um mundo extraordinariamente complexo, instável e veloz. Se queremos produzir pensamento útil, devemos ensaiar formatos ligeiros, estimulantes e flexíveis para abordar a complexidade, atentos às condições de recepção dos leitores. Com certeza isso é algo que compete tanto a quem atua na edição (editores, autores e jornalistas) como na Educação.


Em Variações sem Fuga, seu texto introdutório ao livro de Delia, você já mostrava certa desconfiança com relação à possibilidade da leitura transformar as práticas pedagógicas. O texto sinalizou que, mais que ler, era necessário “reler, conversar, pensar, discutir, ensaiar, brincar e analisar... e voltar a fazê-lo muitas vezes”.
Nessa frase aponto uma variedade de exercícios mentais e físicos que devemos realizar para vincular a leitura e a experiência, que é, a meu ver, o que nós, que trabalhamos com a formação leitora, devemos aspirar. Se trata de ir da leitura da página à observação do entorno, da solidão à companhia, da palavra escrita à oral, e vice-versa. Um movimento incessante que custa muita energia, mas que, com consciência, tem um efeito revitalizante como o dos esportes: nos oxigenam e nos fazem sentir mais vivos.


E o que devem fazer os diretores das escolas para incentivar essa ginástica entre os professores?
O diretor deve proteger os professores para evitar que eles percam o foco de suas tarefas essenciais e estimular o trabalho coletivo, a observação do real e a reflexão crítica. Sempre com o intuito de colaborar para criar um olhar consciente e questionador tanto do entorno como das próprias concepções e maneiras de ler. Lembro da frase de Delia, “mesmo com as dificuldades e contando com elas”, é assim que podemos mudar a escola. Quando se estimula o professor a observar com atenção e a ensaiar novas estratégias e se abre espaços para conversar e se aprimorar, até mesmo os erros se transformam em fonte de conhecimento.
Tudo isso pode ser resumido em três palavras: confiança, autonomia e atenção. O gestor deve brindar os docentes com elas e propiciar que eles, por sua vez, as concedam aos alunos. Aplicar essas palavras na escola cotidianamente exige um esforço tenaz. Mas somente assim a instituição poderá ser criadora de cidadania.


O livro de Delia foi publicado no ano 2000. Como você descreveria o que se passou na cultura escrita desde então?
É uma situação muito complexa. Ainda não conseguimos sequer formular as perguntas adequadas, em parte porque os termos que utilizamos têm perdido eficácia. A que exatamente nos referimos quando falamos de ler e escrever hoje? Os objetos e as práticas que associamos a esses verbos são extraordinariamente diversos na atualidade. No entanto, muitos são os discursos simplificadores que, com base em alguns dados isolados, resultam em conclusões otimistas ou pessimistas. Para provocar o pensamento, quero me afastar dos tópicos mais conhecidos – o fim do livro de papel e a redução dos leitores – e propor algumas linhas de reflexão. Por exemplo, evidenciar que a crise da leitura que vivemos não se deve à diminuição do interesse pela leitura, e sim ao oposto dela, ou seja, a multiplicação e diversificação dos usos e dos usuários da cultura escrita. Hoje, lemos e escrevemos para praticamente tudo e isso tem transformado a própria definição da cultura escrita. Quando a leitura era privilégio de poucos e estava restrita a poucos formatos, alguns antropólogos a opunham à cultura oral. Segundo eles, a palavra escrita permitia o pensamento racional e objetivo. Por isso a vinculavam com a democracia. Já sabemos que essa vinculação não é obrigatória e somos mais capazes de entender a racionalidade nas culturas ágrafas e o valor de suas estruturas sociais. Também já se coloca em crise o vínculo entre escrita, memória e conservação (e, portanto, entre escrita, pensamento e democracia).


Podemos pensar, então, que estão se apagando as fronteiras entre a oralidade e a escrita?
Essas fronteiras sempre foram porosas, mas nunca tanto como agora. Basta observar o que acontece com os telefones celulares: os jovens praticamente não falam, mandam mensagens. São escritas que estão destinadas a desaparecer, como a maior parte do que publicamos atualmente, tanto no papel quanto nas telas.


Por que você considera que textos como as mensagens de celular vão desaparecer?
Isso tem a ver com a economia da memória e a cultura escrita. Armando Petrucci, grande paleógrafo italiano, afirmou que há uma lei que rege essa economia: quanto maior o número de mensagens que se deseja guardar, menor será a resistência do material escrito. A pedra e o pergaminho resistem ao passar do tempo melhor que o papiro e o papel de trapos. E eles duram mais que o papel reciclado em que foram produzidos a maior parte dos livros do século 20. O enunciado de Petrucci é válido e se complica mais na dialética do mundo digital que supõe a interação de um hardware e um software. O que escrevemos e fotografamos em dispositivos de dez anos atrás, mesmo que tenha sido guardado, dificilmente poderá ser lido pelos aparatos reprodutores de hoje.
Pensemos nas fotografias: tiramos centenas e as esquecemos no celular quando trocamos de modelo a cada ano. As consequências são fortes e têm uma implicação também sobre a maneira como escrevemos. Mas, reitero, essas mudanças se iniciaram com a expansão e a diversificação dos leitores. E a irrupção da internet há algumas décadas teve um efeito catalisador que mexeu com todos os campos. Se pretendemos que a leitura e a escrita tenham uma relação com a formação da cidadania, devemos repensar as estratégias. Ler e escrever pode também levar à simplificação, à impulsividade.

Como a escola deve trabalhar na era da internet?
Não só ela, todas as instituições – incluídos aí os governos, os órgãos de saúde, as empresas... – têm de repensar sua essência. A escola pública segue sendo o principal organismo destinado a igualar as oportunidades e o único espaço inteiramente consagrado a fomentar a aprendizagem, ainda que cada vez mais seja necessário aprender durante toda a vida. Nesse sentido, creio que se deve questionar a eficácia da maneira mais usada para aproximar a internet das aulas: distribuir tablets.
Pode ser útil, mas não é imprescindível, nem essencial. Cedo ou tarde, todas as crianças entram em contato com a internet. Mas, talvez, nunca mais elas tenham uma oportunidade melhor de aprender a pensar, conviver ou aprender. Tudo o que fazemos deve se basear em valorizar a singularidade do tempo escolar nesse período ímpar da vida. Se a internet multiplica as fontes de informação e as oportunidades de aprendizagem fora das instituições de ensino, é preciso se aproveitar disso ainda que não tenhamos um computador para cada aluno ou em cada sala.

O que deveríamos considerar nessas práticas didáticas?
Menciono duas coisas fundamentais, mas que não são as únicas. Uma é a convergência de textos, imagens e sons que se dá naturalmente entre as crianças mundo afora. Na cultura escolar tradicional havia uma clara diferença e até mesmo um antagonismo nesse aspecto. Isso não pode seguir assim. Outra é a maneira como aumenta a interação entre leitores (que já são ao mesmo tempo escritores e editores, já que leem, escrevem e publicam de maneira simultânea) e escritores.
É um grande desafio lidar com tudo isso quando ainda não temos didáticas eficientes de leitura, mas é imperativo que o façamos. O professor não pode seguir fundamentando sua autoridade e controlando a informação nem seguir supondo que é o único que ensina. Ele não só deve ajudar a orientar as crianças em um mundo que oferece informação em excesso mas também precisa aprender a aprender com elas.

Podemos dizer que há uma crise na escola motivada por essas mudanças?
Sim, e essa crise é dupla: foi fundada para igualar oportunidades, mas em boa medida tem sido uma reprodutora de desigualdade (por isso, em muitas instituições os alunos saem sem saber ler e escrever).
Além disso, o êxito escolar também tem sido cada vez menos eficaz para, por exemplo, assegurar um trabalho estável e bem remunerado. Há algumas décadas, ter uma graduação era suficiente para ter um futuro razoável assegurado. Agora, em muitos países desenvolvidos e em vários latino-americanos, o doutorado não é suficiente. É por isso, entre outras razões, que surgem os pós-doutorados: uma maneira de ocupar uma força de trabalho para a qual forçosamente haverá mercado.
Assim, apesar do mundo se tornar cada vez mais amplo, com frequência a capacidade de decidir sobre nosso futuro parece se estreitar. A escritora francesa Viviane Forrester (1925-2013) chamava esse fenômeno de horror econômico. Considero inaceitável. A Educação deve ajudar também que cada pessoa possa ser um pouco mais dona de sua vida e não se apegue a um modelo único de desenvolvimento pessoal e coletivo.
Se a escola assume plenamente que não só tem de preparar para o futuro como também oferecer a todos a oportunidade de um presente em que possamos desfrutar da diversidade, que hoje está bem mais visível e acessível em todos os sentidos, teremos conseguido muito. Digo isso sabendo que a diversidade é também uma fonte de conflitos. Aprender a conviver com eles de maneira pacífica é um desafio formidável. Esse é o objetivo que enfrentamos não apenas nas escolas, mas também nas bibliotecas públicas que, sem dúvida, têm ganhado uma importância maior. Mas isso é um outro tema e espero que em outro momento possamos chegar a ele.