Ensinar e aprender a ler e a escrever na escola hoje
Como a diversificação e a intensificação da cultura da escrita influenciam o trabalho de professores e diretores
POR: Daniel GoldinCom base no prólogo que acompanha a obra fundamental de Delia Lerner, a equipe de GESTÃO ESCOLAR me pediu que fizesse um artigo sobre o papel dos diretores na formação de leitores na escola. Minha resposta é esta falsa entrevista. Espero que você compreenda que essa manobra literária procura ser, antes de tudo, um convite ao diálogo e um ato de congruência.
Por que você insistiu que não queria escrever um artigo, e sim uma entrevista?
Vivemos em um mundo extraordinariamente complexo, instável e veloz. Se queremos produzir pensamento útil, devemos ensaiar formatos ligeiros, estimulantes e flexíveis para abordar a complexidade, atentos às condições de recepção dos leitores. Com certeza isso é algo que compete tanto a quem atua na edição (editores, autores e jornalistas) como na Educação.
Em Variações sem Fuga, seu texto introdutório ao livro de Delia, você já mostrava certa desconfiança com relação à possibilidade da leitura transformar as práticas pedagógicas. O texto sinalizou que, mais que ler, era necessário “reler, conversar, pensar, discutir, ensaiar, brincar e analisar... e voltar a fazê-lo muitas vezes”.
Nessa frase aponto uma variedade de exercícios mentais e físicos que devemos realizar para vincular a leitura e a experiência, que é, a meu ver, o que nós, que trabalhamos com a formação leitora, devemos aspirar. Se trata de ir da leitura da página à observação do entorno, da solidão à companhia, da palavra escrita à oral, e vice-versa. Um movimento incessante que custa muita energia, mas que, com consciência, tem um efeito revitalizante como o dos esportes: nos oxigenam e nos fazem sentir mais vivos.
E o que devem fazer os diretores das escolas para incentivar essa ginástica entre os professores?
O diretor deve proteger os professores para evitar que eles percam o foco de suas tarefas essenciais e estimular o trabalho coletivo, a observação do real e a reflexão crítica. Sempre com o intuito de colaborar para criar um olhar consciente e questionador tanto do entorno como das próprias concepções e maneiras de ler. Lembro da frase de Delia, “mesmo com as dificuldades e contando com elas”, é assim que podemos mudar a escola. Quando se estimula o professor a observar com atenção e a ensaiar novas estratégias e se abre espaços para conversar e se aprimorar, até mesmo os erros se transformam em fonte de conhecimento.
Tudo isso pode ser resumido em três palavras: confiança, autonomia e atenção. O gestor deve brindar os docentes com elas e propiciar que eles, por sua vez, as concedam aos alunos. Aplicar essas palavras na escola cotidianamente exige um esforço tenaz. Mas somente assim a instituição poderá ser criadora de cidadania.
O livro de Delia foi publicado no ano 2000. Como você descreveria o que se passou na cultura escrita desde então?
É uma situação muito complexa. Ainda não conseguimos sequer formular as perguntas adequadas, em parte porque os termos que utilizamos têm perdido eficácia. A que exatamente nos referimos quando falamos de ler e escrever hoje? Os objetos e as práticas que associamos a esses verbos são extraordinariamente diversos na atualidade. No entanto, muitos são os discursos simplificadores que, com base em alguns dados isolados, resultam em conclusões otimistas ou pessimistas. Para provocar o pensamento, quero me afastar dos tópicos mais conhecidos – o fim do livro de papel e a redução dos leitores – e propor algumas linhas de reflexão. Por exemplo, evidenciar que a crise da leitura que vivemos não se deve à diminuição do interesse pela leitura, e sim ao oposto dela, ou seja, a multiplicação e diversificação dos usos e dos usuários da cultura escrita. Hoje, lemos e escrevemos para praticamente tudo e isso tem transformado a própria definição da cultura escrita. Quando a leitura era privilégio de poucos e estava restrita a poucos formatos, alguns antropólogos a opunham à cultura oral. Segundo eles, a palavra escrita permitia o pensamento racional e objetivo. Por isso a vinculavam com a democracia. Já sabemos que essa vinculação não é obrigatória e somos mais capazes de entender a racionalidade nas culturas ágrafas e o valor de suas estruturas sociais. Também já se coloca em crise o vínculo entre escrita, memória e conservação (e, portanto, entre escrita, pensamento e democracia).
Podemos pensar, então, que estão se apagando as fronteiras entre a oralidade e a escrita?
Essas fronteiras sempre foram porosas, mas nunca tanto como agora. Basta observar o que acontece com os telefones celulares: os jovens praticamente não falam, mandam mensagens. São escritas que estão destinadas a desaparecer, como a maior parte do que publicamos atualmente, tanto no papel quanto nas telas.
Por que você considera que textos como as mensagens de celular vão desaparecer?
Isso tem a ver com a economia da memória e a cultura escrita. Armando Petrucci, grande paleógrafo italiano, afirmou que há uma lei que rege essa economia: quanto maior o número de mensagens que se deseja guardar, menor será a resistência do material escrito. A pedra e o pergaminho resistem ao passar do tempo melhor que o papiro e o papel de trapos. E eles duram mais que o papel reciclado em que foram produzidos a maior parte dos livros do século 20. O enunciado de Petrucci é válido e se complica mais na dialética do mundo digital que supõe a interação de um hardware e um software. O que escrevemos e fotografamos em dispositivos de dez anos atrás, mesmo que tenha sido guardado, dificilmente poderá ser lido pelos aparatos reprodutores de hoje.
Pensemos nas fotografias: tiramos centenas e as esquecemos no celular quando trocamos de modelo a cada ano. As consequências são fortes e têm uma implicação também sobre a maneira como escrevemos. Mas, reitero, essas mudanças se iniciaram com a expansão e a diversificação dos leitores. E a irrupção da internet há algumas décadas teve um efeito catalisador que mexeu com todos os campos. Se pretendemos que a leitura e a escrita tenham uma relação com a formação da cidadania, devemos repensar as estratégias. Ler e escrever pode também levar à simplificação, à impulsividade.
Como a escola deve trabalhar na era da internet?
Não só ela, todas as instituições – incluídos aí os governos, os órgãos de saúde, as empresas... – têm de repensar sua essência. A escola pública segue sendo o principal organismo destinado a igualar as oportunidades e o único espaço inteiramente consagrado a fomentar a aprendizagem, ainda que cada vez mais seja necessário aprender durante toda a vida. Nesse sentido, creio que se deve questionar a eficácia da maneira mais usada para aproximar a internet das aulas: distribuir tablets.
Pode ser útil, mas não é imprescindível, nem essencial. Cedo ou tarde, todas as crianças entram em contato com a internet. Mas, talvez, nunca mais elas tenham uma oportunidade melhor de aprender a pensar, conviver ou aprender. Tudo o que fazemos deve se basear em valorizar a singularidade do tempo escolar nesse período ímpar da vida. Se a internet multiplica as fontes de informação e as oportunidades de aprendizagem fora das instituições de ensino, é preciso se aproveitar disso ainda que não tenhamos um computador para cada aluno ou em cada sala.
O que deveríamos considerar nessas práticas didáticas?
Menciono duas coisas fundamentais, mas que não são as únicas. Uma é a convergência de textos, imagens e sons que se dá naturalmente entre as crianças mundo afora. Na cultura escolar tradicional havia uma clara diferença e até mesmo um antagonismo nesse aspecto. Isso não pode seguir assim. Outra é a maneira como aumenta a interação entre leitores (que já são ao mesmo tempo escritores e editores, já que leem, escrevem e publicam de maneira simultânea) e escritores.
É um grande desafio lidar com tudo isso quando ainda não temos didáticas eficientes de leitura, mas é imperativo que o façamos. O professor não pode seguir fundamentando sua autoridade e controlando a informação nem seguir supondo que é o único que ensina. Ele não só deve ajudar a orientar as crianças em um mundo que oferece informação em excesso mas também precisa aprender a aprender com elas.
Podemos dizer que há uma crise na escola motivada por essas mudanças?
Sim, e essa crise é dupla: foi fundada para igualar oportunidades, mas em boa medida tem sido uma reprodutora de desigualdade (por isso, em muitas instituições os alunos saem sem saber ler e escrever).
Além disso, o êxito escolar também tem sido cada vez menos eficaz para, por exemplo, assegurar um trabalho estável e bem remunerado. Há algumas décadas, ter uma graduação era suficiente para ter um futuro razoável assegurado. Agora, em muitos países desenvolvidos e em vários latino-americanos, o doutorado não é suficiente. É por isso, entre outras razões, que surgem os pós-doutorados: uma maneira de ocupar uma força de trabalho para a qual forçosamente haverá mercado.
Assim, apesar do mundo se tornar cada vez mais amplo, com frequência a capacidade de decidir sobre nosso futuro parece se estreitar. A escritora francesa Viviane Forrester (1925-2013) chamava esse fenômeno de horror econômico. Considero inaceitável. A Educação deve ajudar também que cada pessoa possa ser um pouco mais dona de sua vida e não se apegue a um modelo único de desenvolvimento pessoal e coletivo.
Se a escola assume plenamente que não só tem de preparar para o futuro como também oferecer a todos a oportunidade de um presente em que possamos desfrutar da diversidade, que hoje está bem mais visível e acessível em todos os sentidos, teremos conseguido muito. Digo isso sabendo que a diversidade é também uma fonte de conflitos. Aprender a conviver com eles de maneira pacífica é um desafio formidável. Esse é o objetivo que enfrentamos não apenas nas escolas, mas também nas bibliotecas públicas que, sem dúvida, têm ganhado uma importância maior. Mas isso é um outro tema e espero que em outro momento possamos chegar a ele.