É possível mudar o nome da nossa escola?
POR: Cláudio Neto
Hoje, trago um exemplo de um projeto que partiu das indagações aos alunos e da realidade na qual eles estão inseridos. O resultado (ainda não concluído totalmente) veio de um bom envolvimento entre educadores, alunos e a comunidade. Essa integração pode possibilitar, inclusive, reparações históricas, como a mudança de nome da nossa escola.
Em 2013, nós iniciamos na EMEF Infante Dom Henrique o Projeto Político-Pedagógico (PPP) “Valores que não têm preço” com o objetivo de combater a violência e a discriminação na escola. Na prática, nós trabalhávamos um valor (tema) por bimestre e o tema do primeiro bimestre daquele ano foi identidades. O primeiro aprendizado a esse respeito foi o consenso de que não há uma única identidade e sim múltiplas identidades, mesmo considerando a realidade de uma escola. De maneira interdisciplinar, o tema foi abordado e ficamos felizes com o resultado, pois em 2014 já era possível perceber a cultura de paz na escola.
O PPP “Valores que não têm preço” continua sendo o eixo narrativo fundamental da escola e já foram trabalhados valores (temas) como: identidade, amizade, respeito, família etc. Em 2016 nós sentimos a necessidade de abordar novamente o tema da identidade, porque já haviam se passado três anos e os alunos que entraram na escola depois de 2013 não tinham estudado esse tema ainda.
No entanto, algo diferente ocorreu nesse intervalo de três anos. Dessa vez, nós resolvemos discutir também a identidade do nosso trabalho e também da própria escola. Disso resultaram duas coisas importantes. Uma no plano pedagógico e outra de ordem prática. Os roteiros de aprendizagem surgiram como uma necessidade metodológica e a discussão da legitimidade do nome do patrono dominou o debate acerca da identidade da própria organização escolar.
O trabalho com os roteiros redundou em uma das melhores metodologias de ensino e de aprendizagem que já lançamos mão, culminando em premiação no concurso Territórios Educativos, promovido pelo Instituto Tomie Ohtake, cuja cerimônia de entrega do prêmio ocorrerá no dia 25 de novembro. A discussão da identidade da escola teve como consequência a proposta de mudança do seu nome, dando início a um processo democrático de ampla consulta à comunidade, que transcorreu de fevereiro a outubro de 2016, e a tramitação do projeto de Lei nº 257/17 na Câmara Municipal durou de fevereiro a outubro deste ano. Vale destacar que os roteiros de aprendizagem e o processo de mudança de nome da escola continuaram imbricados em 2017, uma vez que a escritora Carolina Maria de Jesus, eleita em votação direta para substituir o nome do Infante Dom Henrique (atual patrono), foi moradora do bairro do Canindé e o seu livro Quarto de Despejo foi trabalhando no desenvolvimento dos temas “Gênero e Diversidade”.
Como surgiu a ideia de mudança de nome da escola?
Em fevereiro de 2016, na primeira semana de planejamento anual, apontou-se a necessidade de abordar mais uma vez o tema da identidade. Nessa discussão, foi feito o questionamento sobre a própria identidade da escola, bem como da necessidade de saber o que pensavam os alunos e a comunidade a esse respeito. Para tanto, ficou decidido que os alunos e os pais decidiriam sobre a mudança ou não do nome da escola, a partir de um debate promovido durante o primeiro bimestre.
Como foi a repercussão na equipe escolar?
Não houve polêmica, ainda que uma professora e a secretária de escola tenham manifestado pesar, por serem descendentes de portugueses. Contudo, mesmo elas entendiam a necessidade de se discutir essa questão, visto que outrora o bairro tivera uma presença marcante de portugueses e atualmente os imigrantes bolivianos são aqueles que ocupam mais intensamente o território, além de migrantes de outras regiões do Brasil.
Como foi o diálogo com os alunos e com a comunidade?
De maneira geral os alunos também reagiram bem à proposta, apesar de dois ou três dizerem que achavam o atual nome da escola muito bonito. Gostavam da sonoridade. A despeito disso, quando participaram das reuniões de esclarecimentos, eles também tomaram partido da necessidade de mudança. Em relação aos pais a surpresa foi ainda maior, porque muitos deles foram alunos da escola e nós imaginávamos que poderia haver resistência. Prevíamos um nível de saudosismo com o passado. No entanto, nas reuniões realizadas com os pais e na reunião do Conselho de Escola não houve uma única objeção e a mudança de nome obteve unanimidade na votação.
Como foi o processo de votação e os trâmites legais para efetivar a mudança de nome da escola?
Após o consenso de mudança de nome foram definidos os critérios de indicação de candidatos, a forma de campanha eleitoral e o processo de votação. Ficou estabelecido que os alunos, os profissionais da escola e os pais podiam indicar nomes, com a condição de que deveriam defender esses personagens nas reuniões de esclarecimentos. Foram indicados os seguintes nomes: Ariano Suassuna, Carolina Maria de Jesus, Frida Kahlo, Patrícia Galvão (Pagu) e Janete Silva (funcionária da escola). Carolina Maria de Jesus foi eleita com quase 40% dos votos.
A partir de setembro todos votaram em uma única urna grande de acrílico transparente (lacrada). Esta urna foi levada a todas as salas de aula para que os alunos votassem, depois permaneceu por uma semana na secretaria da escola para que os pais e os profissionais da escola votassem. No mês de outubro de 2016 o processo foi encerrado em reunião do Conselho de Escola, na qual todos os membros do conselho votaram.
Como determina a legislação, em fevereiro desse ano a escola encaminhou ofício e relatório circunstanciado à Câmara Municipal de São Paulo para a formulação de um Projeto de Lei (257/17), a ser votado em dois turnos na Câmara e seguir para sanção do Prefeito Municipal.
Então agora a escola já tem um novo nome?
A aprovação da mudança de nome da escola em segundo turno na Câmara Municipal ocorreu no dia 04 de outubro, causando grande euforia na escola. Para surpresa geral, no entanto, no dia 02 de novembro foi publicado o veto do Prefeito Municipal, sob a alegação de homonímia, “vez que o nome proposto já foi atribuído” a uma escola de Educação Infantil. Com o veto, o Projeto de Lei retorna à Câmara Municipal, cabendo aos vereadores decidir sobre a matéria.
Nós já iniciamos uma campanha em favor da derrubada do veto, pois a legislação permite a homonímia desde que os equipamentos de educação sejam de níveis diferentes de ensino, como é o caso. Isso ocorre, por exemplo, nas denominações da EMEF Presidente Epitácio Pessoa e da EMEI Epitácio Pessoa, bem como nos casos da EMEI Dona Leopoldina e da EMEF Imperatriz Leopoldina, todas da rede municipal paulistana.
A comunidade que estava em clima de festa ficou apreensiva, mas mobilizada para assegurar o direito de decidir sobre o seu destino, bem como está confiante em relação à derrubada do veto, especialmente pela repercussão negativa que esta notícia gerou no debate educacional da cidade de São Paulo. Muitas escolas, educadores, universidades e ativistas do país inteiro estão expressando apoio à campanha, o que significa dizer que não houve derrota. Ao contrário, este percalço não só uniu ainda mais a escola e a comunidade como transformou um problema local em um debate nacional.
Esta situação revela, sobretudo, que os projetos podem unir a escola e a comunidade para resistirem às adversidades, quando se pensa em extrapolar os limites da ação pedagógica, aproximando o currículo e a história do lugar, com vistas a instituir um certo sentido de educar, capaz de promover reparações históricas como essa. A escola e a comunidade decidiram escolher a narrativa mais apropriada quando se depararam com a chance de romper com a versão oficial da história contada pelos dominadores.
Claudio Marques da Silva Neto é diretor da EMEF Infante Dom Henrique, em São Paulo. Tem experiência em direitos humanos, formação docente, cultura escolar, indisciplina, violência e gênero. É mestre e doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).
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