Entre a escola e o mundo: o que as cidades têm a ensinar aos educandos?
POR: Ewerton de Souza
Observar a cidade com os olhos de um educador resulta geralmente em enxergar uma série de possibilidades de aprendizagem. Creio que vocês, como eu, ao visitarem uma exposição, frequentarem um parque ou passarem pela rua da escola onde trabalham sofrem com um inevitável pensamento: como aproveitar esses espaços para a composição de suas aulas?
Fato é que todo espaço, urbano ou rural, apresenta potencialidades fantásticas para a mediação entre o conhecimento e o educando. No entanto, a cidade, mais que um instrumento de aprendizagem, é um complexo que precisa ser compreendido: sua história, as desigualdades e as interações que cada aluno desenvolve nela não podem estar fora do currículo. Se apropriar dela é uma oportunidade de enriquecimento das experiências de aprendizagem.
Penso nisso a partir do território que conheço, um bairro periférico incrustado no tecido complexo e contraditório da cidade de São Paulo. Imagino que todos os dias, indo ou voltando da escola, pegando ônibus, trem ou simplesmente andando pelas calçadas, nossos educandos, como diz o Criolo, encontram “duas nuvens em cada escombro, em cada esquina”. A cidade é a manifestação de possibilidades infindas, mas igualmente a negação de diversos sonhos. A experiência urbana revela, mas também escancara o quanto nossas crianças, jovens e adultos estão alheios ou excluídos do que uma metrópole pode oferecer em termos de desenvolvimento pessoal.
Duas situações que vivenciei me fizeram dar conta disso. A primeira ocorreu na ocasião em que, trabalhando com um projeto polêmico sobre arte tumular em São Paulo, propusemos uma visita ao memorável Cemitério da Consolação. Após convencer, à época, gestores, alunos e comunidade a realizar essa visita, estávamos todos lá, entrando no ônibus quando uma educanda, última a chegar, me procurou toda esbaforida e desanimada para avisar que não iria à visita. Sua justificativa? "Ai, professor, vou não. Vim de chinelo e lá deve ser uma lameira só, não vai dar."
Outro caso, mais recente e parte de nosso projeto atual de aulas na rua: combinamos de fazer uma caminhada pela Paulista que iniciaria no MASP. Saímos da escola de transporte coletivo e qual foi minha surpresa quando, aguardando para partirmos, me chega uma aluna toda arrumada, maquiada, com roupa e sapato para grandes ocasiões.
Após o cumprimento e o justo elogio, interpelei-a e lhe expliquei que faríamos uma caminhada e, portanto, seria mais apropriada uma roupa leve e confortável. Qual nada! Ela me respondeu na lata: "Tá doido, professor, o senhor vai me levar lá na Paulista, só gente chique e eu vou de qualquer jeito. Nem pensar." E seguiu me falando de como seria um privilégio ir a um lugar que ela nunca tinha botado o pé. Mais tarde, quando percebeu que a situação não exigia tanto rigor, resolveu o problema entrando em uma lojinha ali na Paulista mesmo e comprando um par de chinelinhos de dez reais.
Primeiramente, percebi que propiciar a apropriação pelos educandos dos espaços da cidade é uma missão importante para a escola. Esse acesso muitas vezes só se viabiliza por meio dos projetos desenvolvidos por nós. Conversando com os alunos nessa caminhada a que me referi, descobri jovens, adultos e idosos que, embora tenham nascido ou vivido muitos anos em São Paulo, nunca pisaram em lugares como a Paulista, simplesmente porque nunca consideraram que um MASP, um Itaú Cultural ou uma Casa das Rosas fossem espaços no qual eles, cujos direitos de cidadãos lhe são sistematicamente negados, pudessem entrar.
Em segundo lugar, qualquer currículo que incorpore a cidade em sua composição precisa fazer a comunidade e a cidade dialogarem. Os olhos com os quais nossos educandos verão esses espaços são os olhos condicionados pela realidade da qual fazem parte. Quando uma educanda questiona que não irá ao cemitério da Consolação porque não quer sujar os pés de barro, ela verbaliza sua experiência em relação aos cemitérios que conhece, certamente espaços periféricos, malcuidados, poucos dignos. Inevitavelmente haverá comparação. E para dar conta de explicar essa experiência concorrerão conteúdos das ciências humanas e sociais, da Matemática e das linguagens. Mas concorrerá principalmente a sensibilidade da equipe em observar as descobertas, espantos, percepções que os educandos apresentam por meio de suas falas. E aqui, tão ou mais importante que os registros posteriores à visita, são aquelas antecipações e expectativas manifestadas antes de a saída acontecer.
Trazer a casa, o bairro, a cidade, o mundo para o currículo também não se restringe às saídas pedagógicas que a escola pode fazer. Se essa saída não estiver articulada a uma série de outras atividades que visem debater, discutir, obter informações e conhecimentos que façam compreender melhor o tema que a motivou, a experiência da visita será maravilhosa, mas morrerá nela mesma. É importantíssimo fazer conversar a vivência da cidade com aquela do território no qual a escola e o educando se inserem. Em nossa escola temos adotado como solução curricular para isso o pensar sobre os problemas que nossos projetos abordarão, colocando-os na seguinte perspectiva:
- como a questão ou o tema afeta o nosso educando em sua vida pessoal;
- que interações o problema estudado gera na relação deste educando com as pessoas do território no qual está inserido;
- numa dimensão maior, seja cidade, estado, país, mundo, como a temática discutida se apresenta à e é debatida pela sociedade em geral.
Falando de São Paulo, por exemplo, o poeta Glauco Mattoso diz: “Te tornas, ano a ano, mais mudada: / quem chega não se encontra com quem parte, / a rua não se avista da sacada”. Discutir a cidade certamente ajudará os educandos a questionar e buscar soluções para este problema central da vida urbana, que é o distanciamento entre as pessoas e a constituição de relações baseadas no individualismo, na violência e na exclusão. Botá-la no currículo promoverá aqueles objetivos de que tanto ouvimos falar nos documentos: a construção de relações sociais justas, equânimes e solidárias. Assim, mais uma vez nós, educadores, que o professor Moacir Gadotti chama “profissionais do sentido”, estaremos problematizando e tornando significativa a experiência que a escola deseja provocar.
Ewerton Fernandes de Souza é coordenador geral no CIEJA Clóvis Caitano Miquelazzo, escola da prefeitura de São Paulo que lida exclusivamente com Educação de Jovens e Adultos, especialmente na faixa etária dos 15 aos 18 anos. Foi um dos 50 finalistas do Prêmio Educador Nota 10 de 2017.
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