Como minha escola se preparou para receber alunos imigrantes e refugiados
Questões mundiais de migração afetam o dia a dia das escolas brasileiras. Como resolver?
POR: Cláudio NetoEsta é uma questão que tem ocupado um espaço considerável no debate educacional brasileiro e se intensifica nas escolas localizadas nas regiões fronteiriças do Norte e do Centro Oeste, apesar de centros econômicos das regiões Sudeste e Sul também não serem alheios a ela.
Para entendê-la e responder à pergunta do título, precisamos de uma série de informações sobre a economia do nosso país e o atendimento de alunos estrangeiros nas nossas escolas, que vou detalhar a seguir. Por fim, também vou mostrar o exemplo de uma escola que tem conseguido criar vínculos significativos entre os estudantes e fazer a inclusão de imigrantes e refugiados.
O aumento do número de alunos imigrantes e refugiados nas escolas brasileiras tem a ver com o potencial da economia do nosso país, que, após a grande crise econômica mundial de 1929, vem se consolidando no cenário internacional (ainda que não seja uma trajetória isenta de nossas próprias crises).
De acordo com os dados do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), o ciclo mais duradouro e consistente ocorre entre 1955 e 1980. Embora o país não tenha passado por outra fase de crescimento econômico tão duradoura, a nossa economia continuou prosperando e atualmente estamos entre as 10 maiores economias do mundo.
Com a atual intensificação do fluxo migratório, associada a conflitos bélicos no Oriente Médio e à atual situação política e econômica de países como Angola, Haiti e Venezuela, mais imigrantes e refugiados têm aportado por aqui, em busca de melhores condições de vida, apesar da nossa própria constrangedora desigualdade social.
Consequentemente, isso tem refletido no aumento de alunos estrangeiros nas escolas brasileiras, principalmente nas escolas da rede pública. Conforme revelam os dados do Censo Escolar 2016, as matrículas de alunos estrangeiros cresceram 112% no Brasil em oito anos, sendo que as escolas públicas absorvem 64% delas, e o estado de São Paulo responde por um terço do total.
Os imigrantes têm o mesmo direito à educação que as pessoas nascidas no Brasil?
A resposta é: SIM. E este é um dos poucos direitos assegurados no cambaleante sistema educacional brasileiro. A nossa legislação, nos artigos 5º e 6º da Constituição Federal, nos artigos 53° e 55° do Estatuto da Criança e do Adolescente e nos artigos 2° e 3° da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), determina que os estrangeiros têm o mesmo direito de acesso à educação que as pessoas nascidas no Brasil. A recente Lei de Migração reforça essa garantia, e os artigos 43º e 44º da Lei dos Refugiados garantem que a falta de documentos não pode impedir o acesso à matrícula nas escolas.
LEIA MAIS O que muda na matrícula de alunos estrangeiros?
Como tem sido as experiências desses alunos nas escolas brasileiras?
Ainda que as garantias legais sejam amplas e irrestritas, os alunos estrangeiros têm enfrentado muitas dificuldades nas escolas brasileiras. Elas vão da barreira linguística à insegurança dos profissionais para lidar com esses alunos que falam um idioma diferente. Algumas escolas já criaram mecanismos para promover a inclusão desses alunos, mas ainda assim não dá para negar que a situação desses estudantes é delicada e desafiadora. O constrangimento e a discriminação ainda existem.
Alguns erros frequentes, infelizmente, dizem respeito a prognósticos equivocados cometidos por educadores em relação aos alunos imigrantes. Esses prognósticos vão de dislexia e déficit de atenção até distúrbios de aprendizagem, quando na verdade o que está em questão é uma dificuldade de comunicação decorrente das diferenças de idioma associada a características mais introspectivas das crianças.
O que a experiência tem comprovado é que, em escolas em que há um bom trabalho de acolhimento dos alunos estrangeiros, a dificuldade com a língua passa a ser secundária, devido a uma maneira mais descontraída de encarar esse processo. A experiência intercultural no ambiente escolar passa a ser uma oportunidade para criar vínculos significativos entre os estudantes, e desta maneira proporcionar a aprendizagem.
É possível proporcionar outro tipo de experiência educativa aos alunos imigrantes?
É perfeitamente possível e eu conheço algumas escolas que estão obtendo êxito ao investirem na criação de vínculos significativos e na integração dos alunos imigrantes. Um bom indicador são escolas que recebem alunos em situação de refúgio que saíram de maneira inesperada e repentina de seus países, como ocorre por causa de conflitos bélicos. Essas escolas, por enquanto, não registraram casos de trauma psicológico entre esses estudantes, o que mostra como o acolhimento é um fator muito importante para que esses indivíduos se sintam mais confortáveis.
O que efetivamente pode ser feito pelas escolas para promover a integração?
As escolas que eu mencionei, que tiveram sucesso na integração de alunos imigrantes e refugiados, tiveram princípios norteadores semelhantes:
- reconheceram que o respeito ao imigrante passa pela promoção da democracia na escola;
- a imigração passou a ser um eixo narrativo no PPP e no currículo;
- criaram projetos específicos para discutir a situação dos imigrantes no contexto escolar;
- criaram uma comissão para recepcionar os alunos estrangeiros no primeiro dia de aula;
- todas as línguas faladas na escola passaram a fazer parte da comunicação escrita (placas de identificação dos espaços);
- investiram no protagonismo dos estudantes;
- promoveram o diálogo com a comunidade;
- partiram do diálogo com as famílias para entender melhor o problema e os dilemas enfrentados pelos alunos no ambiente escolar.
Esses princípios embasam o projeto de inclusão de alunos estrangeiros da Escola Escritora Carolina Maria de Jesus, atual Infante Dom Henrique, localizada no centro da capital paulista, onde sou diretor.
A partir da sugestão dos pais estrangeiros, a escola criou o projeto Escola Apropriada: Educação, Cidadania e Direitos Humanos: um grupo de trabalho composto por alunos imigrantes e brasileiros para discutir a segregação, o preconceito e a xenofobia presentes no contexto escolar, com o objetivo de superar esses problemas.
Na primeira reunião do grupo de trabalho, os alunos tinham que dizer quais eram os três principais problemas enfrentados pelos estrangeiros na escola e de que maneira eles poderiam ser resolvidos. Cada aluno recebeu três tiras de papel da cor verde para escrever ou desenhar os três problemas (que chamamos de fantasmas) e três tiras da cor azul para escrever as propostas de como resolvê-los.
Com base nas respostas, foram criados dois gráficos: um com os problemas identificados e outro com as propostas de resolução. Os alunos não tiveram medo de considerar propostas polêmicas, como a criação de turmas específicas para os alunos estrangeiros. Isto revela o grau de opressão que se vivia na escola. No entanto, após três reuniões debatendo o assunto, os próprios estudantes chegaram à conclusão de que essa não era a melhor saída para resolver o problema do desrespeito contra os imigrantes, e que a integração poderia ser mais eficaz.
Atualmente, a escola é reconhecida justamente pelo trabalho de integração dos alunos estrangeiros. Segregação, desrespeito e xenofobia deram lugar à convivência harmônica, respeitosa e solidária entre os estudantes. Vale ter em mente que este não foi, e não deve ser, um projeto pontual e de curta duração. Teve início em fevereiro de 2012 e as reuniões acontecem quinzenalmente até hoje, com a perspectiva do projeto ser integrado ao currículo da escola.
A partir do primeiro projeto, outros três foram desdobrados: Um migrante mora em minha casa, Trabalho escravo nem pensar e Si yo te entiendo. Este último foi proposto, organizado e realizado por alunas do 6º ano, descendentes de bolivianos. Elas queriam ensinar espanhol para os colegas e promover a integração, após perceberem que apenas os alunos hispanofalantes participavam da conversa em espanhol durante o recreio. No ano de 2017, este e mais três projetos da escola foram premiados, três deles pelo reconhecimento do trabalho com a integração e a promoção do respeito à diversidade.
Destaco, por fim, que a liderança do gestor é fundamental no processo de acolhimento dos imigrantes e de criação de vínculos significativos entre os estudantes. Nós, diretores, somos os principais responsáveis pela democracia na escola. Cabe ao gestor instituir o diálogo com os professores, funcionários, estudantes e a comunidade escolar. A criação de significados compartilhados e de consensos vêm da nossa capacidade de articulação entre os atores envolvidos. O gestor escolar que atua nessa perspectiva tem mais chance de tornar a escola um espaço permanente de formação.
Para saber mais:
O acesso à educação escolar de imigrantes em São Paulo: a trajetória de um direito
Claudio Marques da Silva Neto é diretor da EMEF Infante Dom Henrique, em São Paulo. Tem experiência em direitos humanos, formação docente, cultura escolar, indisciplina, violência e gênero. É mestre e doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo (USP).
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