Pequenos grandes delitos
O cinismo e o desinteresse em relação à existência do outro abrem frestas para o desrespeito e a violência
POR: Terezinha Azerêdo RiosTerezinha Azerêdo Rios é graduada em Filosofia e doutora em Educação.
Gosto de partilhar um texto muito bonito, cujo título é Eu Sei, Mas Não Devia, da escritora ítalo-brasileira Marina Colassanti. Logo no início, ela diz: "Eu sei que a gente se acostuma, mas não devia". E segue apontando as múltiplas coisas com as quais nos habituamos no cotidiano, muitas vezes sofrido: levantar apressados, comer de pé por estarmos atrasados, não ter um lugar para colocar flores, não ouvir o canto dos pássaros, não ligar para os amigos nem receber mensagem deles, não prestar atenção nas pessoas que caminham ao nosso lado.
"A vida é assim mesmo no mundo contemporâneo", dirão alguns. E, então, a gente se acostuma. Mas não devia! Para essa necessidade de não se acostumar é que a ética nos chama a atenção. Com seu caráter reflexivo, ela nos faz voltar para o dia a dia e problematizá-lo, quando ele nos ameaça com uma passividade e, mais seriamente, com o descaso diante daquilo que, por ser costumeiro, passa, de certo modo, a ser qualificado como bom.
É comum dizer que se enfrenta uma crise moral ou ética quando há uma transformação de valores na sociedade, mas não é isso que acontece. Valores são criações históricas. Diferem de uma sociedade para outra e se modificam com base nas relações dos indivíduos e grupos nas sociedades. Essa modificação, muitas vezes, decorre de uma reflexão ética sobre sua consistência e seus fundamentos. O que caracteriza efetivamente uma crise nas relações sociais é certa indiferença - falsa, na verdade - diante dos valores, o que podemos chamar de cinismo. Nesse caso, não somos indiferentes: estamos tentando escamotear a realidade.
Jurandir Freire Costa, psicanalista pernambucano radicado no Rio de Janeiro, fala de uma "cultura da razão cínica", referindo-se a essa suposta apatia diante dos valores. É a afirmação de que "tanto faz" ou a de que "vale tudo", encontrada muito frequentemente entre nós, na sociedade e em todas as instituições. Temos, assim, que estar atentos para ver como ela se manifesta no contexto escolar e pensar em ações que ajudem a superá-la.
O cinismo pertence à família da violência. Isso é demonstrado no gesto do aluno que joga papel no chão e que, interpelado, afirma que sem sujeira não há trabalho para a faxineira; do professor que frequentemente chega atrasado e diz que, se os alunos podem entrar mais tarde, por que não ele?; do diretor que afirma que as reuniões com os pais são perda de tempo, já que a família não se interessa pelo que se passa na escola. Essa violência vai penetrando pelas frestas abertas por essas atitudes e se espalhando pelas salas e pelos corredores, instalando um ambiente de desrespeito velado.
A violência nas escolas tem sido um tema explorado em pesquisas e discussões. Entretanto, esse aspecto - chamado de pequeno - nem sempre é levado em consideração. Mas ele é a essência da negação do respeito: o alheamento, o não- reconhecimento da existência do outro como alguém semelhante e igual em direitos. Nas tarefas cotidianas, é preciso que os gestores, principalmente no ambiente escolar, evitem que as pessoas se acostumem com o que se classifica como pequenos delitos. Se eles rompem com a ética, são grandes, por isso devem ser apontados e superados, num trabalho que envolva toda a comunidade.
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