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Medicalização escolar: epidemia de nosso tempo?

Cada vez mais, atitudes são tratadas como sintomas e acalmadas com remédios, sem que se pense sobre mudanças no processo de ensino

POR:
Cláudia Rodrigues de Freitas
Cláudia Rodrigues de Freitas. Foto: Arquivo pessoal
Cláudia Rodrigues de Freitas Pós-doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e professora do Departamento de Estudos Básicos (Debas) na mesma instituição

A medicalização da vida invade todos os espaços ocupados pelos seres humanos. E também avança sobre o cenário educacional. A escola torna-se parte desse complexo movimento social e, assim, replica-o naturalmente, gerando uma visibilidade intensa para tudo aquilo que o caracteriza.

Esse é um fenômeno de muitas faces. Reconheço-o não apenas no simples ato de prescrever medicamentos, mas, principalmente, como engrenagem e máquina capaz de transformar a vida em objeto. Dessa maneira, questões cotidianas são convertidas em doença. A escola, potente espaço de absorção do que se passa na sociedade, mostra-se frágil e acolhedora a esse processo. E aqueles que deveriam merecer um olhar cuidadoso diante das dificuldades de aprendizagem enfrentadas ou por ter comportamentos diferentes dos que se deseja recebem conforto imediato em algum diagnóstico apressado. O sujeito estudante, as tensões do aprender, as relações complexas em que aluno e professor estão inseridos merecem pouca atenção. A rede de inserção some e sobra apenas o que passam a chamar de sintoma. Sintoma de quê?

Cada vez mais, a escola identifica um número expressivo de crianças com diagnósticos variados. Endossados pelo discurso médico, esses rótulos associam problemas da vida contemporânea, como tristeza, cansaço e agitação a conceitos de saúde como depressão, bipolaridade, transtorno obsessivo-compulsivo, Transtorno de Déficit de Atenção com ou sem Hiperatividade (TDAH) entre outros.

Ao me referir à escola ou mesmo à Medicina, não trato uma ou outra em bloco. Esse seria um equívoco e significaria renegar os grandes serviços prestados por elas e a possibilidade de mudança de uma e de outra. Sou professora e reconheço um trilhar potente do ensino, assim como percebo a parceria e os avanços da área da saúde. De toda forma, é preciso dar atenção às evidências e examinar o que se mostra intensamente em desalinho: existe um processo de medicalização dos modos de ser e estar na escola produzido socialmente e endossado por essa instituição como um agente do contexto em que ela atua.

Um desvio construído historicamente

Não há nenhuma novidade no relato sobre estudantes descritos como tendo problemas de comportamento. A pesquisadora Ilina Singh, professora do King’s College London, na Inglaterra, mostra evidências de uma instituição que na década de 1930 inicia o processo de identificação de crianças como sendo problemáticas em função de "ambientes inadequados" (referindo-se ao contexto familiar). Por causa disso, elas eram reunidas na intenção de ter o comportamento modificado. O local, chamado Bradley Home, chegou a ter 200 pessoas submetidas a vários tipos de tratamento comportamentais, medicamentosos e cirúrgicos.

Dando um salto para a última década, nada foi tão intenso e gerou tanto distanciamento da dedicação ao sujeito aluno. O diagnóstico de TDAH tem tomado o espaço educacional brasileiro, primeiro na forma de alerta e, logo depois, como prescrição médica. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM, na sigla em inglês), socializado desde 1952, dá as diretrizes para essa prática e a Educação vem se tornando especialista em acolher seus preceitos como verdade, sem refletir sobre os processos de aprendizagem, razão de seu fazer.

Até crianças da Educação Infantil têm sido encaminhadas aos consultórios com um olhar de suspeita sobre uma suposta hiperatividade. Os modos de ser e viver no espaço escolar passaram a ser entendidos como evidência de desvio, muitas vezes associado ao TDAH.

Chamo esse contexto de epidemia, pois ele se mostra em incidência crescente, apresentando em curto período de tempo um grande número de casos. Reconhecer nos comportamentos de seus alunos uma "hiper- atividade" revela o quê? Ao usar o hífen entre as duas palavras marco a necessidade de nós, professores, olharmos para o que estamos definindo como atividade em demasia. Assim, hiperativo se tornou a forma mais comum de a escola se referir aos sujeitos descritos pelo discurso médico como TDAH.

Mesmo que não cheguem a receber um diagnóstico formal, o modo como esses indivíduos passam a ser tratados por seus educadores toma esse caráter. A palavra comportamento acaba sendo usada, na prática, como uma análise das maneiras de agir do sujeito, abstraindo sua constituição e a rede de relações em que vive. A análise se baseia, fundamentalmente, em escalas de estimativas preenchidas por pais e professores e muitos são rotulados precocemente.

Felipe*, quando o diagnóstico ignora a vida

Felipe foi medicado pela justificativa de comportamentos descritos como hiperativos e passou a tomar Ritalina preventivamente ao iniciar sua trajetória escolar. O menino corre de um lado para o outro. Não sossega apenas com a palavra da professora.

Ao investigar a história de Felipe, exercício que exige tempo e atenção, ligamos cada fio de sua curta existência e ficamos sabendo de muitos detalhes. Ele perdeu a mãe ao nascer, os irmãos foram distribuídos entre os parentes e o pai tomou um rumo desconhecido desde então. Havia, ainda, uma indefinição sobre quem se proporia a cuidar do menino e, portanto, ele não possuía um laço parental com alguém até aquele momento.

Quais os critérios para definir um tratamento medicamentoso a alguém que tem 3 anos? Como um remédio para um corpo que se mostra em hipermovimento pode ser indicado quando nada se sabe sobre ele além desse movimento? Felipe precisa mesmo é de atenção e cuidado. Outro aspecto igualmente sério é a idade do menino. Muitos dos comportamentos considerados inadequados podem ser vistos como inteiramente apropriados à faixa etária dele. Mas ninguém tem escutado Felipe.

Precisamos refletir sobre a escola que estamos organizando para crianças tão pequenas. A disciplina rigorosa, marca do Ensino Fundamental, não pode ser simplesmente antecipada pela Educação Infantil.

Às vezes, ouvimos histórias de crianças com TDAH que apresentam dificuldades em atividades onde é exigido um esforço mental constante. Tais propostas seriam vivenciadas como desagradáveis e evitadas por elas. Pergunto, então: o que é um esforço mental constante? Suportar o tédio de aulas pouco interessantes? Assimilar conteúdos desvinculados do universo infantil? Temos de repensar o contexto e a qualidade das propostas pedagógicas oferecidas.

Como ocorreu com Felipe e segue acontecendo com crianças e adolescentes Brasil afora, muitas vezes o diagnóstico de TDAH se realiza com base em indicadores fixos e isolados, sem analisar a dinâmica, a origem e a singularidade do sujeito em questão. Documentos como o DSM-4 e o DSM-5 apenas apresentam critérios para a análise. Porém, essas diretrizes têm sido usadas para massificar os diagnósticos.

Escutar o sintoma e não o estudante pode provocar um hiato sem preço. Segundo Singh (2012), os medicamentos "podem suprimir a capacidade das crianças para protestar contra as más condições, permitindo assim que tais condições permaneçam".

No início do século 21, em processo vertiginoso da medicalização do viver, vemos um acirramento da onda organicista da psiquiatria, agora com sofisticações genéticas, mapeamentos cerebrais e reações químicas evoluídas tecnologicamente.

Quando nos perguntamos por que há um excesso de diagnósticos, surge uma variedade de razões. De um lado, existe a tendência à biologização por parte dos médicos. De outro, uma pressa das escolas em encontrar explicações sobre o que não conseguem entender. Portanto, quando um aluno não aprende ou tem problemas de conduta, buscam-se patologias. Deixa-se de questionar os métodos educacionais, as condições de ensino e aprendizagem e procura-se no cérebro da criança as causas das dificuldades.

Proponho uma revisão das concepções trazendo a possibilidade de um enfoque que permita reconhecer o caráter complexo do diagnóstico, pois a realidade é assim. De fato, trata-se de um processo contínuo, que não se resolve com uma receita médica. Um mesmo agrupamento de sintomas pode receber várias interpretações e indicar caminhos diversos. É preciso encontrar o sentido de tais manifestações na história do próprio sujeito e entender sua singularidade.

Algumas vezes, o que se considera não é o sofrimento da criança, mas o incômodo produzido no meio onde está inserida quando manifesta que algo não vai bem com ela. Nessa perspectiva, a medicação apenas tenta "acalmar" aquele que se "comporta mal". Para reverter isso, é necessário um urgente espaço de reflexão sobre o tema por meio de um contraponto: atender aos sujeitos, alunos e professores, oferecendo tempo e cuidado a um e a outro. Caso contrário, esse pode ser um remédio desnecessariamente amargo para o educar.

Referências bibliográficas

  • Baptista, C. R. Inclusão em Diálogo: Algumas Questões que Insistem. In: III Seminário Nacional de Formação de Gestores - Educação Inclusiva: Direito à Diversidade. Ensaios pedagógicos. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria de Educação Especial, p. 36-40, 2007.
  • Singh, I. Not Robots: Children’s Perspectives on Authenticity, Moral Agency and Stimulant Drug Treatments. J Med Ethics, 2012.
  • Singh, I.; Kendall, T.; Taylor, C.; Mears, A.; Hollis, C.; Batty, M.; Keenan, S. Young People’s Experience of ADHD and Stimulant Medication: A Qualitative Study for the NICE Guideline. In. Child and Adolescent Mental Health Volume, 2010.

* O nome foi trocado para preservar a identidade da criança.

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