O que Mário Quintana pode nos ensinar sobre gestão escolar
Gestores podem se arriscar a fazer política pública para não cair no vazio e se reinventar em sua formação
POR: Cláudio Neto"Se nunca nasceste de ti mesmo, dolorosamente, na concepção de um poema...
estás enganado: para os poetas não existe parto sem dor."
Mário Quintana
A formação do gestor escolar exige novos paradigmas? Eu posso apostar que muitos de nós, gestores escolares, não só nos fazemos esta pergunta como também nos esforçamos para continuar acreditando na possibilidade de reinvenção do nosso papel na Educação. Ainda que apostemos na importância da atuação dos gestores escolares na superação dos dilemas existentes na Educação brasileira, nós não podemos ignorar dois aspectos que, se não inviabilizam o nosso trabalho, dificultam imensamente o nosso fazer cotidiano, quais sejam, a ausência de políticas públicas de longo prazo, com investimentos adequados, e a quase inexistente política de formação.
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Nós sabemos que nos dias atuais já se reconhece a importância da nossa atuação na ação estratégica da educação, na organização, na administração e na articulação do trabalho pedagógico da escola. Outro dado importante é o fato de as escolas reconhecidamente inovadoras e/ou com bons resultados nos indicadores nacionais serem dirigidas por profissionais que igualmente se destacam e gozam de reconhecimento.
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Invariavelmente, os materiais de formação destinados aos gestores escolares informam que a concepção de gestão escolar pressupõe a consideração do elemento humano, a participação, a natureza coletiva do trabalho pedagógico, a democracia, a desconcentração e descentralização do poder. Isso tem mudado as exigências e, consequentemente, o nosso perfil profissional desde a década de 1990. Não há mais lugar para um profissional com perfil meramente burocrático e centralizador.
O contexto histórico
Desde 1847, a legislação brasileira reconhece a necessidade do diretor de escola, segundo estudo da professora Rosmeiri Antunes. Nessa perspectiva, o Manifesto dos Pioneiros de 1932 também exerceu considerável influência para a criação do curso de Pedagogia em 1939, culminando com a habilitação de administração escolar na reformulação de 1969. No entanto, mesmo a Lei de Diretrizes e Bases (LDB 4.024/61) afirmando no seu Artigo 42 que o diretor de escola deverá ser um profissional qualificado, foi na LDB 5.692/71 que o cargo de diretor escolar foi instituído.
A partir da redemocratização, na segunda metade da década de 1980 e mais intensamente na década de 1990, com a Constituição de 1988 e a LDB 9.394/96, os aspectos da democracia e da autonomia na escola passaram a ser correntes no discurso educacional. A abertura política e a volta do regime republicano consolidaram a necessidade de se pensar a Educação nessa mesma perspectiva, e como direito fundamental.
No plano mais geral: as políticas públicas
É importante não perdermos de vista que a nossa atuação profissional não está desprendida das diretrizes políticas da educação nacional. Nesse sentido, se analisarmos o projeto de Educação de longo prazo usando como parâmetro a galeria dos profissionais que têm ocupado historicamente o cargo de Ministro da Educação, veremos que há algo, no mínimo, revelador. Desde o início do processo de redemocratização (1985) até hoje, considerando uma série histórica de três décadas, as formações dos nossos ministros variam de advogados a economistas. Desde 1985 até hoje o cargo de ministro da Educação foi ocupado seis vezes por advogados, quatro vezes por economistas, duas vezes por administradores, duas vezes por engenheiros, uma vez por um médico, uma vez por um físico, uma vez por um matemático e uma vez por um filósofo, sendo que este último permaneceu no cargo por quase seis meses e o matemático foi ministro interino por quase um mês apenas.
Se por um lado a formação dos nossos ministros não os desabona para o exercício no Ministério da Educação, por outro, isso evidencia de maneira veemente a descrença na capacidade dos gestores escolares e dos educadores de carreira para assumirem esta responsabilidade. De fato, a cadeira de ministro da Educação nunca foi ocupada por um pedagogo ou por um professor vinculado às faculdades de educação das nossas universidades. Esta situação instala um paradoxo, porque é precisamente nas faculdades de educação que é feita a formação voltada para a constituição da identidade desse profissional.
Como resultado disso, presenciamos a clara tentativa de transferência de responsabilidade da educação básica para os estados e municípios, de modo que o processo de municipalização do ensino foi a ação mais flagrante no âmbito da política educacional brasileira, explicitando o viés economicista da política educacional. Não me parece que será no campo da economia ou da administração que encontraremos caminhos mais auspiciosos para a educação brasileira.
No contexto da formação: o que nos é reservado
Em relação à formação dos gestores escolares o debate se restringe às duas modalidades mais comuns: a formação inicial, em nível de graduação/licenciatura, e a formação continuada, entendida como formação em serviço, em cursos de curta duração ou, ainda, em cursos de especialização (lato sensu).
No que diz respeito à formação inicial, as universidades vêm adequando os seus currículos para atender às novas exigências colocadas pelo processo de universalização da educação, como tem sido o caso das disciplinas ou habilitações para os educadores da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e para a Educação Especial, para citar apenas dois exemplos.
No campo da formação continuada, além das iniciativas das nossas redes municipais e estaduais de ensino, muitas vezes em parceria com as universidades públicas, outra iniciativa de formação continuada que merece destaque é o curso Progestão, criado e oferecido desde 2001 pelo Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed), voltado para a formação de gestores das escolas públicas brasileiras. Esta iniciativa tem sido objeto de estudo em pesquisas de mestrado e doutorado que apresentam resultados otimistas.
Apesar disso, sabemos que esses cursos são escassos e de pouca abrangência. Geralmente não contemplam todos os gestores de uma mesma rede ou de uma mesma unidade. Assim como eu muitos colegas jamais tiveram a oportunidade de frequentar cursos específicos de formação de gestores, nem na nossa própria rede e nem no Progestão. Ademais, devemos questionar se o debate sobre a nossa formação deve versar exclusivamente sobre o binômio da formação inicial versus formação continuada.
É possível fazer diferente?
Arrisco-me a dizer que sim e vou um pouco mais longe. Nos meus 28 anos de carreira na Educação, a minha experiência profissional pode ser dividida da seguinte maneira, até assumir o cargo de diretor de escola há oito anos: foram 16 anos como professor (alguns dos quais concomitantes como o cargo de coordenador pedagógico até o ano de 2006), três anos como coordenador pedagógico, dois anos como supervisor escolar, um ano como assistente de diretor de escola e um ano como orientador educacional. Nesse sentido, a experiência conta, pois acho que realmente tive 28 anos de experiência e não “um ano de experiência repetido 28 vezes”.
Outro fator que considero significativo é a formação acadêmica (stricto sensu). O fato de eu ter me tornado Mestre em Educação e de estar cursando o Doutorado também em Educação me permitiu ter o olhar informado sobre aquilo que acontece no cotidiano escolar. Eu sou capaz de apostar mais uma vez que muitos dos meus colegas de profissão fariam o mestrado e o doutorado, se tivessem essa oportunidade. Contudo, a nossa realidade não tem sido muito fácil. Estudar e trabalhar 40 horas semanais sem afastamento do serviço é muito complicado, sem falar na falta do apoio financeiro por meio de bolsa de estudos.
Levando em consideração todo esse conjunto, é fácil perceber que a minha defesa é pela perspectiva de uma formação que considere a formação inicial, a formação continuada, a experiência profissional e a formação acadêmica (stricto sensu). Considero fundamental a conjugação de todas essas modalidades e acredito em pelo menos três dimensões importantes na formação dos gestores escolares e dos educadores em geral: a dimensão técnico-pedagógica, a dimensão política e a dimensão intelectual. A primeira seria relativa ao conhecimento das técnicas e dos fundamentos da educação e da profissão; a segunda diz respeito à compreensão de mundo; e a terceira refere-se à erudição, que vai do acesso e apropriação de outras linguagens como a literatura, o cinema, o teatro etc., até a formação acadêmica.
Voltando à nossa epigrafe: o que Mário Quintana tem a nos dizer?
A crença na eficácia da formação inicial e continuada dos gestores escolares não está em discussão, mas há dois componentes a serem considerados e que na minha prática profissional adquirem estatuto de verdade: o valor da democracia e a natureza coletiva da Educação. Pensar um modelo de gestão escolar pressupõe pensar em um modelo de sociedade, caso contrário, a reprodução social é o que restaria a ser feito.
Nesse sentido, a construção da identidade do gestor escolar passa pela constituição de noções importantes em direitos humanos, especialmente no que tange ao direito à Educação, à liberdade de aprender, o respeito à dignidade humana e o princípio da igualdade de oportunidades. Para tanto, a escola tem que se reinventar e criar mecanismos que assegurem esses direitos.
Nascer de si mesmo, de sua realidade e da realidade social mais ampla implica, algumas vezes, em arriscar a fazer política pública para não cair no vazio. Sobre isso, posso dizer que nos inventamos como gestores e professores quando resolvemos oferecer curso de português para estrangeiros e pessoas em situação de refúgio, quando os falantes de língua árabe começaram a chegar à nossa escola. Para assegurar a qualidade e efetivar a perspectiva da Educação ao longo da vida nós criamos um cursinho preparatório para ingresso em escolas técnicas de nível médio para todos os alunos do 8º e do 9º ano. Com o objetivo de superar o preconceito e a discriminação contra os alunos estrangeiros, nós criamos um grupo de trabalho que se reúne quinzenalmente para discutir a condição deles na escola.
Isso tudo só se tornou possível porque há a compreensão de que as capacidades de articulação política e de ação no território passam a ser características importantes na atuação profissional dos gestores escolares e isso não deve ser visto como algo intuitivo ou espontâneo. São as noções incorporadas a partir das três dimensões de formação que possibilitam a compreensão dessa função tão primordial na escola. Assim, a construção de parcerias torna-se fundamental para viabilizar as ações da gestão escolar e da escola de modo geral.
Agindo desta maneira, o gestor estabelece o sentido do seu papel profissional, o que o poupa da crítica da “hipertrofia da gestão” e, ao mesmo tempo, reconhece a sua “importância”, a exemplo do que postulava Ricardo Henriques, superintendente-executivo do Instituto Unibanco e ex-secretário da Secretaria de Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), no 3º Seminário Gestão Escolar, realizado em setembro de 2017, ao falar da formação do gestor escolar.
Nascer de si mesmo, dolorosamente, à moda de Quintana é recusar a lógica da inevitabilidade histórica. É admitir que a poesia pode emanar das circunstâncias mais áridas e hostis, sem, no entanto, perder a capacidade de lutar e de reivindicar os direitos. É acreditar que a “justiça social pode ser implantada antes da caridade” e que a escola, os educadores e o gestores precisam se reinventar a partir dos dilemas que se descortinam no cotidiano.
Claudio Marques da Silva Neto é diretor da EMEF Infante Dom Henrique, em São Paulo. Tem experiência em direitos humanos, formação docente, cultura escolar, indisciplina, violência e gênero. É mestre e doutorando em Educação pela Universidade de São Paulo (USP) e autor do livro Indisciplina e Violência Escolar: dilemas e possibilidades.
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