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Profissão diretor: entre o peso do cotidiano e sonho de fazer diferente

É possível inovar e construir uma escola atrativa em meio às demandas e afazeres próprios da gestão? José Marcos Couto Júnior fala sobre a construção do território educativo na comunidade escolar

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José Marcos Couto Júnior
O diretor José Marcos Couto Junior com os estudantes da escola Ivone Nunes. Fotos: Acervo pessoal/José Marcos Couto Jr

“Direção, substantivo simples. Ato de dirigir”. Gramaticalmente, direção é substantivo simples porque é composto por um único radical. É o contrário de composto. Se fosse este simples antônimo de “complicado” ou “complexo”, duvido que diretores (do mais esquentado ao mais pacifista) não comprassem briga ao ouvir tamanho disparate!

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A função de um gestor muitas vezes parece nos exigir super poderes, no estilo X-Men. Controle mental de Jean Grey, poder de deslocamento do Noturno, piruetas e inventividade do Fera. Pensando bem, às vezes, é bom não termos o raio ocular do Ciclope. Para as confusões que estouram dia a dia, esse poder seria mais problema do que solução... No entanto, como não vivemos em um universo imaginário criado pelo Stan Lee, o “super poder” que nos é cobrado no mundo moderno é a “multifunção”. Atuar com multitarefas é uma exigência do cargo.

Um diretor, dentro de sua escola, precisa responder pelas questões pedagógicas, cuidar dos assuntos relacionados às compras e organização da unidade escolar. É ele também o responsável por gerir, orientar e fiscalizar acerca de acontecimentos ligados à vida funcional dos professores e funcionários. Nós lidamos com recursos públicos e, consequentemente, com aquisições e prestações de contas, além de cuidarmos da enturmação e da distribuição de vagas que serão ofertadas a cada ano. Isso tudo recebendo e enviando diariamente documentos, atendendo e escutando reclamações e sugestões de responsáveis e alunos, enquanto gerimos uma série de sistemas municipais ligados ao desempenho e a freqüência dos nossos discentes na internet.

Não fazemos este trabalho sozinho. Seria desumano. Simplesmente não daríamos conta. Assim, temos uma equipe administrativa e pedagógica que nos auxilia. Mas, no frigir dos ovos, somos nós, diretores, que analisamos, chancelamos, carimbamos e assinamos dando efeito em todas as decisões de nossas escolas.

Os desafios de fazer diferente e o território educativo
Diante de tanto trabalho e responsabilidade fica difícil imaginar que há espaço para inovar, criar estratégias, enfim, para fazer algo diferente dentro da escola. Tenho uma grande amiga e excepcional cronista, a Hélida Gmeiner, que conheci no Mestrado em Educação da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Ela, há alguns anos, publicou uma crônica chamada “Despedida”, que relatava o fim do mandato de uma diretora amargurada. A ex-gestora destilava ironia em cada “agradecimento” à sua comunidade escolar.

Os alunos são parte do grupo responsável pelo cuidado com a horta. As colheitas integram as receitas da merenda escolar

O texto é ótimo, recomendo a leitura e deixo aqui o link para vocês conferirem, mas a parte que mais se encaixa neste artigo é a que afirma: “Na verdade, uma diretora nunca sabe ao certo onde deve estar. Se eu passava muito tempo na escola, o pessoal torcia o nariz dizendo que eu era cri-cri, não dava espaço, não sabia delegar. Quando partia para a Secretaria em busca dos recursos que só faltavam, chamavam-me de ausente”.

Penso que saber onde se está, tentando potencializar e planejar o seu tempo seja uma característica necessária para se realizar uma boa gestão. No entanto, compreender que tipo de escola se quer – assim como os objetivos e metas para se alcançar tal escola – é o real X da questão, a verdadeira solução contra os tsunamis de afazes cotidianos.

Com as idas e vindas à Coordenadoria Regional de Educação (CRE) e às reuniões na Secretaria Municipal de Educação (SME), somadas à carga de trabalho e às responsabilidades diárias dentro da EM Professora Ivone Nunes Ferreira, não é raro quando percebo (já na hora de fechar a escola), que não parei nem para beber água. Aliás, isso é mais regra do que exceção. Só tenho quatro meses na direção, mas estou começando a achar que ter pedras nos rins é inerente ao cargo. Imaginem, então, ter que “pensar fora da caixa”, fazer uma escola diferente, que seja lúdica e atrativa. Com o pouco tempo que temos, ter clareza na percepção do modelo de escola que queremos é essencial. Por isso, pergunto a você, leitor: qual é a função da escola? Quais características e paradigmas uma escola deve ter?

Entendo o espaço escolar como o lugar em que se formam identidades e se desenvolvem ferramentas para que os alunos saiam preparados para o mundo, nos aspectos cognitivo e emocional. Escola é local de debate, de abertura de horizontes. É espaço onde se aprende a ter empatia, se combate preconceitos e, sobretudo, lugar onde se deva tomar partido do lado dos oprimidos.

Entre os projetos da escola também está o incentivo à leitura

Paulo Freire costumava afirmar que na Educação “não existe imparcialidade. Todos são orientados por uma base ideológica, inclusiva ou excludente”. Compreendo, nesta mesma linha, como um dever primaz dos gestores a afirmação de suas comunidades escolares como espaços de inclusão, por excelência. Destes pressupostos, nasceu a busca pela construção do nosso território educativo.

O paradigma deste modelo e também o seu ponto de partida está na ideia de que as melhores práticas, os melhores planos de ação e os métodos pedagógicos mais eficazes obrigatoriamente passarão pela percepção e potencialização das alteridades das comunidades em que a escola está inserida. O educador português Rui Canário, focando no aluno, aponta para este elemento ao questionar: “os alunos e suas experiências constituem o principal recurso para organizar e promover situações de aprendizagem, ou pelo contrário, são encarados como obstáculo principal da ação educativa?”.

Não há nenhuma novidade aqui. Há quase cem anos escolanovistas já indicavam a pesquisa e a experimentação como caminho para a formação de conhecimento. Grandes nomes da Educação nacional reafirmaram esta máxima. De Anísio Teixeira a Paulo Freire, passando por Cecília Meireles e Darcy Ribeiro, os mais respeitados educadores brasileiros do século XX apontaram para a necessidade de extrair das experiências dos alunos o subsídio para o desenvolvimento de saberes.

O território educativo amplia esta perspectiva baseado na gestão democrática e participativa. A ideia é que sejam detectadas e potencializadas práticas e saberes de toda comunidade escolar, de alunos e responsáveis, professores e funcionários. Todas as ações devem ser fruto de debates e necessitam de feedbacks.

Neste contexto, são elementos importantes a criação e o fortalecimento do Conselho Escola Comunidade e do Grêmio Estudantil, mesmo entre os estudantes menores. É necessária a realização de reuniões constantes e periódicas, e de ações que levem os responsáveis para dentro do espaço escolar. Como afirma o Rui Canário, esses elementos são recursos, nunca obstáculos.

Da teoria à prática
Vamos a um exemplo concreto desta teoria. A escola Ivone Nunes foi construída em um terreno que abrigava uma fábrica de telhas de amianto até o final dos anos 1990. Seu solo só foi declarado descontaminado e pôde-se construir nele novamente em 2009. Ali seriam erguidos, três anos depois, seis condomínios do Projeto Minha Casa Minha Vida. São mais de dois mil apartamentos, com aproximadamente dez mil moradores. Isto significa que há apenas uma década o lugar onde hoje trabalhamos, estudamos ou moramos era um depósito de veneno.

Desta forma, debatermos questões como sustentabilidade, compormos músicas e poesias que falem sobre a preservação do meio ambiente, criarmos uma horta orgânica e produzirmos alimentos onde antes havia um espaço contaminado, trazem uma dupla função. Primeiramente, recordamos a comunidade sobre a sua história, respeitando as suas especificidades. Em segundo lugar, consolidamos as bases para criar o nosso plano de ação e futuro projeto político pedagógico (PPP) através das alteridades da comunidade. Todas estas ações foram realizadas em apenas três meses de gestão. E elas não seriam viáveis caso a comunidade escolar não “comprasse a ideia” e se, sobretudo, não se visse contemplada neste projeto.

A escola Ivone Nunes conta com uma série de projetos que visam desenvolver o aluno integralmente

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Na Ivone Nunes, os alunos plantam sementes e mudas para depois colherem alface, cheiro verde, salsa. Os responsáveis são convidados a visitarem e contribuírem com a horta – já trouxeram, por exemplo, hortelã-pimenta para variar nosso cultivo. As professoras se encarregam de abordarem temas ligados à sustentabilidade. A horta é regada pelos alunos, por funcionários e pela moradora da nossa escola, responsável por zelar pelo espaço. As cozinheiras usam o tempero na comida (e eu sempre reclamo porque não tiram foto na hora que colhem). Em suma, todos nós compreendemos a importância dos nossos canteiros. É concreta e ao mesmo tempo simbólica a presença daquelas hortaliças, já que permite que a comunidade se aproprie e ressignifique o espaço escolar.

Os alunos se envolvem nos diferentes processos que envolvem a horta

Entendo como as rotinas, as cobranças, a burocracia (desde a direção, passando pelo corpo docente) acabam por apontar o caminho da eliminação de heterogeneidades como solução. É uma via “mais simples”. Uniformizar ações, avaliações e métodos a fim de facilitar nosso dia a dia são movimentos que, se por um lado são quase naturais, por outro, são extremamente perigosos.

Não digo “desta água não beberei”, e sei que em algum momento poderemos “entrar no automático”. Porém, ao termos a consciência de que com esta ação eliminaremos a criatividade, a inventividade e a construção de novas identidades e pensamentos, essa consciência também nos torna mais vigilantes para que o peso do cotidiano não nos roube o sonho de fazer diferente.

Um abraço,

José Marcos Couto Jr

José Marcos Couto Júnior é formado em História e Mestre em Educação pela Faculdade de Formação de Professores da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Em 2018, foi eleito Educador do Ano no Prêmio Educador Nota 10. Servidor da Prefeitura do Rio de Janeiro há 10 anos, atua desde fevereiro como diretor na Escola Municipal Professora Ivone Nunes Ferreira, no Rio de Janeiro.

Referências

CANÁRIO, Rui. Territórios educativos e políticas de intervenção prioritária: uma análise crítica.

MATTA, Hélida Gmeiner. Crônicas de uma trajetória docente. Niterói: Intertexto, 2018. p. 25-27.

PERSPECTIVA, Florianópolis, v. 22, n. 01, p. 47-78, jan./jun. 2004

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