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Entrevista com Myriam Nemirovsky

Especialista argentina diz que formações em serviço precisam promover o vínculo do docente com a leitura

POR:
Anderson Moço, GESTÃO ESCOLAR, Verônica Fraidenraich
Myriam Nemirovisky. Foto: Marina Piedade
Myriam Nemirovisky

Houve um tempo em que a pesquisadora argentina Myriam Nemirovsky achava que bastava propor aos professores, durante os horários de formação, maneiras de trabalhar a leitura em sala de aula para que eles pudessem ajudar a criar leitores e escritores. Hoje, ela não tem mais essa opinião. "O fundamental é aprofundar o vínculo que eles têm com esse objeto peculiar, com essa ação social particular que chamamos ler", diz a especialista, que atuou durante 45 anos com formação docente para o ensino da linguagem escrita. Isso porque, ressalta Myriam, é muito difícil um professor trabalhar um conteúdo ao qual não teve acesso. "Parece-me paradoxal esperar que ele tenha o domínio da leitura quando sabemos que, em geral, a escola que frequentou desde a Educação Infantil até a faculdade não o ajudou a adquirir esse conhecimento."

Não se trata de sugerir ao docente uma mudança abrupta na maneira como trabalha a leitura. Qualquer alteração tem de ser gradual e fundamentada. Ao observar o avanço dos alunos no aprendizado, a cada atividade realizada, ele se anima a intensificar essa proposta.

Myriam é formada em Filosofia e Ciências da Educação pela Universidade de Buenos Aires, na Argentina, e mestre em Educação pelo Centro de Investigação e Estudos Avançados do Instituto Politécnico Nacional, no México - onde teve a dissertação do mestrado orientada por Emilia Ferreiro. Recém-aposentada, ela trabalhou por 22 anos com projetos de formação de professores em Madri e outras regiões da Espanha e, eventualmente, ainda participa de alguns programas nessa área. No ano passado, a pesquisadora esteve no Brasil para ministrar uma palestra sobre as sequências didáticas de leitura e escrita, durante a Semana de Educação 2011, promovida pela Fundação Victor Civita (FVC), quando conversou com GESTÃO ESCOLAR.

Como trabalhar o conteúdo de leitura com o professor durante a formação em serviço para que ele forme a contento leitores e escritores?
MYRIAM NEMIROVSKY
Há um senso comum de que o docente, até pela sua profissão, lê bastante, domina todos os gêneros textuais e suas características específicas e sabe escrever e usar bem cada um deles. Isso está longe de ser verdade. Ele lê pouco e lê mal. Portanto, é fundamental que os encontros formativos sejam planejados de modo a desenvolver o desempenho dele como leitor, tornando a leitura literária uma constante nesse trabalho. O professor deve ser incentivado a ler, a analisar a bibliografia do autor, a comparar com outras obras do mesmo gênero, enfim, tudo aquilo que ele pede para o aluno fazer. Além dos livros, o coordenador pedagógico pode trabalhar outros gêneros, como as notícias de jornal, para que os docentes observem as diferentes formas como cada veículo trata um mesmo assunto. Também é interessante pensar na realização de oficinas literárias. É importante que o professor discuta, opine e questione, ampliando assim o saber leitor.

Fora a formação, que fatores podem aproximar o docente da leitura?
MYRIAM
Ajuda muito quando, nos encontros pedagógicos, há um entorno, um clima, um ambiente propício ao docente para que ele expresse suas dificuldades leitoras. Ciente desses problemas, o coordenador pedagógico vai incluir no planejamento esse conteúdo e as estratégias por meio das quais será possível orientar o professor a melhorar o desempenho leitor. Parece-me paradoxal esperar que ele tenha o domínio da leitura quando sabemos que, em geral, a escola que frequentou desde a Educação Infantil até a faculdade não o ajudou a adquirir esse conhecimento. Como é possível que ensine um aluno a ler de uma maneira que ele próprio nunca teve a chance de aprender? É preciso conscientizá-lo disso e deixar claro que ele não tem culpa por não dominar as competências leitoras.

É preciso saber as características de todos os gêneros para ensiná-los?
MYRIAM
Essa é uma pergunta para a qual não tenho resposta. O docente que lê com pouca frequência não sente atração pelos livros e certamente não terá formado um vínculo favorável a respeito do ato leitor. É necessário que ele se aproxime, progressivamente, da leitura, desenvolvendo um grau de desejo, de curiosidade e de busca em relação a ler, porque sem isso todo o restante é impensável. Trabalho há 45 anos em formação docente e houve uma época em que eu acreditava que bastava comunicar e propor atividades e formas de trabalhar a leitura para que eles pudessem utilizá-las nas aulas. Aos poucos, porém, fui notando que isso não basta. É importante, mas não suficiente. O fundamental é aprofundar o vínculo que eles têm com esse objeto peculiar, com essa ação social particular que chamamos ler. Se não conseguimos enriquecer e melhorar essa ligação, nada mais surtirá efeito.

Essa relação do docente com a leitura deve ser trabalhada em momentos específicos da formação?
MYRIAM
Não é preciso dedicar um período ou uma etapa própria para isso. Creio, sim, que tem de ser em paralelo. Ao mesmo tempo em que se oferecem as orientações didáticas para ensinar aos alunos, é possível organizar os processos que permitem melhorar a interação do grupo com a leitura. Uma pessoa não pode ensinar a outra a desfrutar de algo que ela não aproveita e é necessário incluir isso nas horas de estudos coletivos.

Como fazer para estimular o professor e envolvê-lo nesse aprendizado?
MYRIAM
Oferecer a ele exemplos de situações didáticas que sejam claras, precisas e acessíveis de modo que consigam, depois, executá-las em sala de aula. Ao propor uma atividade, é válido mostrá-la, explicá-la e, naturalmente, justificar por que fazê-la. Quanto mais detalhes forem fornecidos ao professor, mais chances haverá de ele se animar em realizar a situação planejada com a turma e compartilhar a experiência com os colegas no encontro formativo seguinte. Dessa forma, surgirão novas tarefas a desenvolver. O importante é que ele possa verificar se a classe teve um desempenho diferente do que tem habitualmente, depois de realizar uma proposta de uma nova maneira. Ao perceber nos alunos procedimentos ou atitudes em relação ao conteúdo que, até então, eles não estavam acostumados a ver na rotina da classe, os docentes ficarão mais convencidos de que o trabalho surtiu o efeito desejado.

Há alguma orientação para o coordenador pedagógico escolher os livros que serão explorados na formação?
MYRIAM
É importante dar espaço para que os professores verbalizem e assumam, sem culpa, que não leram obras consideradas clássicas, como Dom Quixote ou outra vista como indispensável de acordo com a cultura local. Digo isso porque existe uma obrigação implícita, quase moral, entre os docentes - principalmente os de Literatura -, de tê-las lido e eles costumam exigir o mesmo dos alunos. Um ponto de partida para a definição do acervo pode ser a priorização das publicações com as quais eles têm algum vínculo - porque leram o livro inteiro ou um fragmento ou, ainda, não leram, mas ouviram algum comentário que lhes chamou a atenção. Assim, será mais fácil levá-los a expor seus pontos de vista e trocar opiniões sobre o tema.

Como aprofundar também o vínculo do professor com a escrita?
MYRIAM
A resistência com a escrita costuma ser maior do que com a leitura. Trata-se, logo, de um trabalho mais difícil, mas a orientação é a mesma: durante os encontros formativos, os professores têm de ser estimulados a escrever textos de tamanhos e gêneros diversos, que sejam revisados pelos pares, de maneira a permitir um aperfeiçoamento constante.

Os professores falam muito sobre a necessidade de analisar os textos bem escritos para que um aluno compreenda o que é escrever bem. Qual é a importância desse procedimento?
MYRIAM
Se todos podemos ter dificuldades mais ou menos relevantes com o desempenho leitor, com a escrita isso é ainda mais acentuado. Não se pode identificar um texto com maior ou menor qualidade se ninguém explica como se faz isso e, muito menos, auxilia a melhorar os próprios textos. Na Espanha, que é a realidade que mais conheço, os docentes rechaçam quando pedimos que escrevam algo porque isso faz com que percebam uma imagem falha deles mesmos. Tal solicitação é motivo de desagrado pois revela a relação geralmente desastrosa que eles têm com a escrita. Então, é óbvio que não queiram desempenhar esse papel para o qual creem ser incompetentes. Os processos formativos têm de ter uma função reparadora nesse sentido. É preciso resolver essa situação de alguma forma.

Como melhorar esse cenário?
MYRIAM
Para isso existem as escolas que formam professores - as universidades - e suponho que são instituições que - em três, quatro ou cinco anos, dependendo do país - têm uma população cativa: os estudantes que pretendem seguir carreira como docentes. Nesse período, há oportunidade e tempo suficientes para levar em conta e trabalhar todos os aspectos com esses futuros educadores. Poderia ser feito algo fantástico nesse sentido, mas, em geral, nos lugares que conheço, se faz muito pouco. Porém, com quem já atua na profissão, percebe-se existir uma proposta que tem sempre um aspecto remediador - é como se tratassem de atenuar algo que não se conseguiu solucionar da maneira mais conveniente.

É possível estipular um tempo para perceber os avanços do professor em relação ao ato leitor?


MYRIAM
Em um ano, dá para notar algumas mudanças. Isso se, durante todo o calendário letivo, forem organizadas de forma sistemática situações de trabalho em que se crie com a leitura um vínculo agradável, divertido, entusiasta.

E os alunos? O que devem fazer para serem bons produtores de texto?
MYRIAM
Na condição de estudante, de sujeito que está num processo formativo, na escola primária ou em uma etapa profissional, ele tem de saber o que vai escrever, por que e para quê. Se não tem resposta a essas questões, não verá sentido no que está fazendo e, logo, não terá motivos para se esforçar e conseguir um produto de qualidade. É como produzir um livro de receitas de sobremesas sabendo que o público-alvo serão leitores que vivem em outra região. Ao ter consciência de que a publicação será lida por outras pessoas, haverá um empenho em executar o trabalho da melhor maneira possível. Compartilhar os objetivos estabelecidos pelo professor dá mais sentido à atividade. Outra possibilidade é promover leituras de vários textos do mesmo gênero, que estão presentes na vida social, como uma carta ou uma notícia de jornal, que ajudem a identificar as características desse formato e sirvam de referência na elaboração do próprio texto. Seja qual for a proposta, ao planejá-la, é essencial considerar qual situação real de produção de texto se deseja praticar.

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