Avaliação na Educação Infantil
O processo precisa considerar o percurso trilhado pelos pequenos, sem julgamentos, notas ou rótulos e fornecer elementos para a equipe repensar as práticas
POR: Karina PadialAs Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Infantil (DCNEI) determinam, desde 2009, que as instituições que atuam nessa etapa de ensino criem procedimentos para a avaliação do desenvolvimento das crianças. Esse processo não deve ter como objetivo a seleção, a promoção ou a classificação dos pequenos e precisa considerar "a observação crítica e criativa das atividades, das brincadeiras e interações das crianças no cotidiano" e empregar múltiplos registros. Tais apontamentos, no entanto, ainda geram dúvidas e interpretações equivocadas. Por isso, não são raros casos de aplicação de provas para turmas de 3 anos, como relatou Rita Coelho, coordenadora-geral de Educação Infantil do Ministério da Educação (MEC), no 1º Seminário Nacional de Avaliação da Educação Infantil, realizado em São Paulo.
Outra estudiosa do tema, Gabriela Portugal, professora da Universidade de Aveiro, em Portugal, acrescenta que a avaliação nessa etapa, geralmente, é dominada pelo uso de instrumentos normativos, direcionados para a identificação das deficiências das crianças e que não atentam para os componentes social, cultural e de interação inerentes ao processo de ensino e de aprendizagem. "Há um desafio importante e atual, o abandono de práticas descontextualizadas que ignoram a individualidade das crianças e a procura de abordagens que captem a unicidade e a autenticidade de cada uma delas, considerando o desenvolvimento dentro dos contextos e das rotinas", ressalta Gabriela.
Em 2012, o grupo de trabalho do MEC sobre essa temática publicou o documento Educação Infantil: Subsídios para Construção de uma Sistemática de Avaliação, em que aponta que hoje se sabe que a meninada não se desenvolve toda da mesma maneira e que ela sofre a influência da realidade cultural e social em que está inserida. A utilização de instrumentos pontuais leva à rotulação e ao estigma dos pequenos, quando o foco precisa estar em como eles agem durante as práticas e interações possibilitadas na escola.
Os riscos de avaliar mal não param por aí. Ao dizer que uma criança não se comporta como deveria, pode-se deixar de ver os avanços que ela já alcançou. Ao pensar, por exemplo, que ela está adquirindo a habilidade de se equilibrar apenas se for bem em um teste realizado com cordas, pode-se ignorar o fato de que ela consegue subir e descer do trepa-trepa sem nenhum problema. Além disso, instrumentos classificatórios favorecem que o professor direcione seus esforços, buscando que a turma seja treinada para obter sucesso em uma ação específica, o que é um grave problema.
"A criança não pode se sentir integrada a uma escola que lhe proporciona uma situação constante de prova, de teste, onde a tensão se mantém e onde ela e sua família são prejulgadas e responsabilizadas pelo fracasso", alerta Jussara Hoffmann, mestre em avaliação educacional pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), no livro Avaliação e Educação Infantil - Um Olhar Sensível e Reflexivo sobre a Criança (152 págs., Ed. Mediação, tel. 51/3330-8105, 42 reais).
Por tudo isso, é fundamental a construção de um modelo que leve em conta o processo educacional, baseado em informações recolhidas ao longo do tempo por meio de situações significativas no contexto das atividades realizadas pelos meninos e pelas meninas e que atenda ao que eles conhecem e são capazes, sem nunca serem penalizados pelo que ainda não sabem.
Esses pontos pressupõem um planejamento que guie todos no sentido da concepção de avaliação que se quer implementar, a formação em serviço dos professores e a elaboração de instrumentos que consigam registrar o percurso realizado e dividir os avanços com as famílias. Com o objetivo de colaborar com essa reflexão e com a transformação de tudo isso em ação efetiva, esta reportagem esmiúça cada uma das etapas desse ciclo que se retroalimenta constantemente.
O ciclo da avaliação na Educação Infantil
- Concepção e planejamento
- Formação
- Instrumentos
- Socialização das informações
Concepção e planejamento
Diretrizes revelam a análise que se deseja fazer
O projeto político-pedagógico (PPP) da instituição de Educação Infantil deve ser pensado de maneira a promover situações que desafiem o que cada menina ou menino já sabe, possibilitar que eles se apropriem de diferentes linguagens e saberes, assegurar que manifestem seus interesses, desejos e curiosidades e valorizar as produções individuais e coletivas. Para se chegar a isso, é necessário que o processo educativo contemple a avaliação e, por meio dela, a constante reflexão sobre os resultados alcançados. "A ação pedagógica só vai favorecer o desenvolvimento dos pequenos se, primeiro, for planejada; segundo, colocada em prática; terceiro, avaliada; e, quarto, replanejada", afirma Marlene Oliveira dos Santos, representante do Movimento Interfóruns de Educação Infantil do Brasil (Mieib), em Campo Grande.
No CMEI Yeda Barradas Carneiro, em Salvador, que tem turmas até 5 anos, a diretora Lininalva Queiroz afirma que a avaliação realizada revela os princípios educacionais da instituição. "Para manter o foco no desenvolvimento da criança, precisamos respeitar a individualidade dela e a escutar, tanto ao buscar sua fala como, principalmente, observando atentamente suas expressões, manifestações e aprendizagens", diz. Catarina de Souza Moro, pesquisadora da Universidade Federal do Paraná (UFPR) e integrante do grupo de estudos do MEC sobre avaliação da Educação Infantil, considera essa escuta fundamental. É possível conversar com os pequenos, perguntar sobre determinadas atividades, saber o que eles mais gostaram e pedir a ajuda deles no momento de organizar o portfólio de produções. "Experiências nesse sentido já nos mostraram que eles conseguem fazer uma apreciação crítica sobre as próprias produções. Eles falam coisas como ‘antes eu não sabia escrever meu nome’ ou ‘olha como eu desenho bem melhor hoje’", diz. Além de permitir que eles expressem algumas opiniões sobre suas experiências, essa situação dá pistas sobre como eles veem suas aprendizagens.
As premissas que integram o PPP também devem refletir na definição dos procedimentos que norteiam a avaliação. Esse cuidado está presente nos planos, anual e semestrais, e no planejamento dos professores do CMEI Yeda Barradas Carneiro. "Com esses instrumentos, conseguimos refletir se as práticas e as estratégias estão adequadas aos objetivos que queremos alcançar", afirma a coordenadora pedagógica Aline Assis.
Formação
Clareza sobre como e por que olhar para a turma
Uma vez que a instituição entende que a avaliação faz parte do processo educativo, cabe ao coordenador fazer com que as diretrizes sejam apropriadas pelos docentes. Esse é o primeiro ponto que um plano de formação sobre o tema tem de contemplar. Com essa sensibilização realizada, deve-se iniciar a reflexão sobre o que se pretende observar e que critérios levar em conta. Boa parte da discussão se baseia no currículo da instituição.
Nas EMEIs Maria José Guido, Jardim Morumbi e Rio Comprido, todas em São José dos Campos, a 90 quilômetros de São Paulo, que formam o núcleo Região 10, a coordenadora pedagógica Elisângela Siqueira elaborou, junto com os professores, indicadores para os diferentes eixos da Educação Infantil. Eles orientam as observações e os registros e são retomados, frequentemente, a fim de que sejam analisados e aprimorados. Em encontros sobre o tema, a coordenadora discutiu diversos tipos de documentação, como o relatório de adaptação, o portfólio de imagens e os pareceres. Pouco antes do fim do semestre, quando a equipe deveria produzi-los, ela retomou o assunto, mais focada na forma como eles seriam apresentados aos pais.
Outro ponto fundamental para análise é como fazer o acompanhamento das crianças. Uma das possibilidades é o coordenador orientar a equipe docente a fazer uma programação para cobrir diferentes aspectos ao longo de um determinado período. Cabe incluir uma atividade com materiais, outra coletiva, no parque, uma roda de leitura e um passeio. Essa sistemática permite avaliar as áreas mais bem-sucedidas e o que ainda requer ajustes.
A reflexão constante também implica não aceitar o trabalho como encerrado. Considerar questões como "Que problemas a turma apresentou com as estratégias que eu sugeri?" e "O que aprendi com essa experiência?" ajudam na problematização. Nesse momento, o gestor pode trazer um olhar de fora da situação, fazendo perguntas que levem a uma análise crítica.
Como se vê, a formação não termina quando a ação é iniciada. Pelo contrário, ela fornece elementos para que o gestor atue no sentido de aperfeiçoar as práticas e o próprio processo avaliativo. "Quando os registros são compartilhados com a coordenação, ela pode identificar elementos da atuação docente que precisam de intervenções e que se transformam em novos objetos de estudo", afirma a pesquisadora Catarina. Por essa razão, Elisângela faz questão de ler todos os relatórios individuais e coletivos produzidos pelos 22 docentes e escrever devolutivas sobre eles. No final do ano passado, por exemplo, ela percebeu que os professores não estavam se aprofundando no eixo de Música. Por isso, o período letivo já começou com formações sobre o tema.
Instrumentos
Muito mais que meros formulários
"A observação e o registro permitem a avaliação contínua e processual. Por meio deles, docentes e coordenadores pedagógicos acompanham o que está sendo construído no dia a dia das turmas", aponta o livro O Trabalho do Professor na Educação Infantil (420 págs., Ed. Biruta, tel. 11/3081-5741, 59 reais), organizado por Zilma Ramos de Oliveira, coordenadora do Instituto Superior de Educação Vera Cruz (ISE Vera Cruz). Os dois instrumentos são os mais defendidos por estudiosos da área porque respeitam a individualidade dos pequenos, consideram o contexto em que eles estão inseridos e são realizados pelos adultos que mediam as ações.
Com a observação, o educador tem a oportunidade de conhecer cada um, as reações, os hábitos alimentares, as brincadeiras preferidas e vários outros detalhes. Por isso, ela é uma grande aliada na avaliação dos bebês e colabora para que se compreenda a forma como se expressam mesmo antes de falar convencionalmente.
O livro organizado por Zilma aponta três características fundamentais na observação. A primeira, o foco, pressupõe que se tenha um objeto de análise, que pode ser a criança, o grupo, uma situação ou uma atividade. A segunda, o objetivo, indica que é importante que ela aconteça para que se conheça melhor algum aspecto da aprendizagem. E a terceira, a continuidade, se explica pelo fato de que o desenvolvimento infantil não se esgota ou não está limitado a um episódio pontual. São elas que asseguram que esse instrumento não vai ser utilizado apenas para que o professor preencha formulários com sim e não, e que gere subsídios para repensar a ação educativa.
A observação pode ser realizada de duas maneiras. Em uma delas, o olhar fica livre para notar o que está acontecendo naquele momento e a outra é mediada por uma pauta que, portanto, pressupõe uma antecipação e um planejamento. No Espaço da Vila, em São Paulo, as perguntas que orientam a análise das turmas até 3 anos são elaboradas coletivamente pela coordenação e a equipe docente (veja alguns modelos utilizados por lá). Durante uma situação de desafios motores, por exemplo, os professores ficam atentos a aspectos como se o bebê engatinha, mantém-se de pé com apoio e desloca-se apoiado na parede.
Obviamente, a memória não é suficiente para guardar tantas informações. Por isso, temos de lançar mão dos registros. Eles são fundamentais para que o educador anote tudo o que lhe chama a atenção e o que os pequenos revelam. É importante que o coordenador instrua os docentes a anotar, de preferência, simultaneamente à observação, o nome da criança, a idade e os locais e os horários em que determinado fato aconteceu. Só assim, ao final de um período, ele conseguirá dar sentido para anotações diárias que podem, a princípio, lhe parecer desarticuladas. A organização dos registros, no entanto, pode ser feita de diversas maneiras. Um caderno em que cada folha seja reservada a um bebê é uma boa opção.
"Eles representam a análise e a reconstituição da situação vivida pelo educador na interação com as crianças. Ao registrar o que observa, ele reflete sobre a evolução do seu próprio trabalho e sobre suas posturas pedagógicas", afirma Jussara Hoffmann, em seu livro. Além disso, segundo ela, um registro bem feito possibilita que se retome essas anotações e veja se as intervenções elaboradas com base nele surtiram algum efeito.
O coordenador também precisa lembrar o grupo dos diferentes tipos de registro. Por exemplo, se o ano começa e o professor conhece pouco a turma, um bom instrumento para a análise é a ficha de adaptação, na qual se pode registrar preferências e reações que cada um manifesta no primeiro contato com uma situação nova.
A documentação não é composta somente de material escrito. Fotos, vídeos, áudios e as produções nas múltiplas linguagens devem ser guardados e organizados. Silvana Augusto, coordenadora de projetos do Instituto Avisa Lá, em São Paulo, comenta, no livro O Trabalho do Professor na Educação Infantil, que uma gravação sobre tudo o que foi dito pelas crianças em uma roda de conversa colabora para observar como elas se comunicam e como as ideias sobre determinado tema vão se modificando.
O vídeo, por sua vez, traz a ação com todas as variáveis que interferiram no desenvolvimento da atividade e permite que aquele momento seja visto várias vezes, captando percepções sobre os pequenos que não foram possíveis na observação direta. E a foto ajuda a refletir sobre a organização do espaço e sobre detalhes, como os gestos durante uma pintura ou desenho. Lembre que quando as imagens forem selecionadas para compor o relatório final, elas precisam estar acompanhadas da data em que a situação foi registrada e de um comentário (se não há o que falar, reflita se ela é realmente necessária).
Para Marlene, do Mieib, esse processo precisa ter polifonia, ou seja, múltiplas vozes. "O olhar sobre a meninada é enriquecido quando, além do professor, outros adultos que acompanham suas aprendizagens são ouvidos", diz. Na Creche-Escola Paulo Rosas, em Recife, que atende crianças até 4 anos, duas vezes por semestre, os docentes e os auxiliares se reúnem para discutir o desenvolvimento de cada menino e menina. Em muitos desses encontros, participam outros funcionários, como a cozinheira que é envolvida na conversa sobre alimentação e a equipe de limpeza que contribui na discussão sobre o desfralde. "A troca de informações, que resulta em uma avaliação coletiva, amplia a reflexão sobre nossas ações", afirma a coordenadora pedagógica Marcela de Cássia Melo Figueiredo.
Socialização das informações
Cuidado! Esse documento é público
Dividir impressões O vídeo, produzido pela equipe da creche de Recife, mostra aos pais a vivência das crianças
Toda a documentação reunida embasa a elaboração de relatórios que mostram o desenvolvimento dos pequenos, a interação deles com as várias linguagens e a convivência com os colegas e os educadores. "Ela representa a memória ressignificada da história vivida pela criança na instituição e favorece a continuidade do processo avaliativo", diz Jussara Hoffmann.
Por meio do relato construído pelo professor com a orientação do coordenador, o percurso de aprendizagem da meninada pode e deve ser compartilhado com os demais educadores e com as famílias. Isso é fundamental, por exemplo, para garantir que um professor, ao assumir uma turma, conheça o que se passou com cada um dos meninos e das meninas no ano anterior. Por isso, vale arquivá-lo na escola durante todo o tempo de permanência da criança. Nas EMEIs da Região 10, em São José dos Campos, antes do início do período letivo, quando o docente é informado sobre o grupo com o qual vai trabalhar, ele recebe, junto com as fichas de matrícula, o relatório individual do ano anterior. "Eles ficam com o documento ao longo de todo o ano para que possam consultar sempre que necessário", diz Elisângela.
Os pais também devem ter acesso ao relatório. Ali, eles conseguem visualizar o caminho trilhado pelo filho e os avanços que ele vem obtendo. Além disso, esse material colabora para prestar contas sobre o que foi realizado. Na Creche-Escola Paulo Rosas, em Recife, é durante a reunião de pais que a troca acontece. "Não fazemos apenas uma entrega, é um momento de conversa e discussão", ressalta Marcela. Primeiro, o professor atende individualmente às famílias e, com base no relato, fala sobre os desafios propostos, os avanços e as habilidades que foram conquistadas. Depois, os responsáveis participam de uma apresentação coletiva, em que os docentes contam sobre as experiências do grupo. Para isso, muitas vezes, eles apresentam vídeos.
Outra estratégia possível é enviar o parecer para casa, permitindo que os pais façam a leitura antes do encontro. Dessa maneira, eles chegam para a conversa já com dúvidas e apontamentos. Independentemente da forma como o compartilhamento é feito, deve-se reservar um espaço para a fala ou a escrita dos responsáveis.
O fato de o relatório ser um objeto de apreciação coletiva tem de ser lembrado durante a construção dele. Leninha Ruiz, formadora na área de Educação Infantil e blogueira de GESTÃO ESCOLAR, sugere que se mantenha o foco nas conquistas de cada um. De acordo com ela, não se deve comparar as aprendizagens como se todos fossem iguais, porque os ritmos são distintos. Além disso, é preciso cuidado na hora de escolher as palavras e transmitir as ideias para que o material não soe pejorativo nem estigmatize alguém.
Além dos pais, o coordenador também precisa realizar uma leitura atenciosa do relatório e preparar uma devolutiva individual para os professores. Nesse momento, vale refletir sobre questões como: "Os objetivos norteadores do desenvolvimento da criança estão presentes?", "Evidencia-se a participação dela nas atividades?", "Privilegia-se o percurso trilhado?", "Percebe-se suas ações individuais?" Assim, a ação avaliativa não fica estática e colabora para continuar alimentando o ciclo de reflexão nessa etapa do ensino.
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